Se é certo que as coisas têm sempre uma explicação qualquer, também não deixa de ser verdade que às coisas não se lhes pode exigir que nos expliquem a sua intimidade.
A intimidade não se explica. No máximo, constata-se. Exactamente por essa razão: por ser uma questão do foro íntimo.
Se nas fotografias da Casa de Sofia, Sofia aparece nua, a dormir ou a banhar-se, é porque a intimidade da casa está muito para além daquilo que o corpo despido de Sofia deixa, ou pode revelar. Sofia é, aqui, apenas uma pequena parte desse segredo que não é, nunca, uma vontade; mas antes uma consequência óbvia do trabalho exercido em torno dessa intimidade que só é secreta por pura definição do próprio conceito.
Nesse mesmo sentido a aparente simplicidade das coisas não se explica. Não é preciso.
Procurar por isso explicar a Casa de Lavra é inútil. A Casa terá, claro, a sua explicação própria; que não é minimamente decisiva para aquilo que se espera da arquitectura.
Há, nesta casa, evidentemente, um conjunto de minuciosas denúncias da sua intimidade. Como há, também, a própria declinação pessoal de quem a fez, que se revela essencialmente em pequenos detalhes. Do corrimão, irregular, como que se fosse achado na rua; amaciado, agarrado à parede dessa forma inequivocamente própria; como se o trabalho artesanal pudesse cumprir o desígnio da singularidade. Ou então a maneira como o tampo de madeira que serve de mesa de refeições assenta sobre a bancada negra que corre toda a casa.
Mas não é por esses pormenores que a obra é singular. Aliás, é. Mas é-o na forma como os pormenores (não) existem; tornando-os ausentes, externos á obrigatoriedade do desenho.
Se a obra é singular, sobretudo se comparada com o panorama de produção arquitectónica recente; é-o sobretudo por não se obrigar ao exercício do desenho.
Na Lavra nada é fingido. Repare-se na naturalidade com que se sustenta a mezzanine, sem qualquer tipo de argumentos que simulem outra solução que não a mais básica; que é, provavelmente, a mais eficaz.
Ou então a ausência de uma métrica para as tábuas de madeira que forram as fachadas, e também a falta de cuidado arquitectónico nas esquinas. Como se o desenho fosse uma pura perda de tempo. Como se o desenho não instituísse qualquer tipo de valor.
E não institui. Pelo menos aqui, nessa definição do espaço que é feito, única e exclusivamente, para o exercício da intimidade. Como se fosse um recolhimento do bosque que a rodeia, por sua vez uma forma de recolhimento também; a fazer lembrar A Casa de Adão no Paraíso do Rykwert.
[Ia agora, a propósito, falar da vez em que me cruzei com o Rykwert, mas isso não faz sentido algum. Na verdade a Casa de Lavra não intenta a ideia da origem. Se o acaso me levou a referir algum tipo de identificação entre A Casa de Lavra e A Casa de Adão no Paraíso, isso foi um erro].
Depois, mais atentamente, descobrimos afinal que nos planos ausentes das fachadas cabem as janelas e as portas; sem que delas nos tenhamos apercebido inicialmente, quando a casa ainda em enclausura; o que afinal vai provar que a nossa ideia da ausência de uma métrica estava errada.
A questão é que esse acto – ou antes: a arquitectura – é feito de recato. E isso torna-a numa singularidade feita à medida das necessidades ou das limitações, com o bom senso e sensibilidade, que deve aliás ser o título de um dos livros que por lá se lêem vagarosamente.
Tem ar de casa de Inverno. Descomprometida. Confortável. Íntima.
Todas as imagens: Casa de Lavra, Nuno Merino Rocha, 2005 (?)
Sobre o bom senso e sensibilidade
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Arquitectura
- ArchDaily
- Arquitectura Hoje
- Arquitextos
- a Barriga de um Arquitecto
- BldgBlog
- btbW architecture
- Coffee with an Architect
- a Daily Dose of Architecture
- Entschwindet und Vergeht
- Desconexo
- Design Observer
- Designboom
- o Desproposito
- Fantastic Journal
- Islas y Territorio
- Lebbeus Woods
- Metropolis Mag
- Noticias Arquitectura
- Plano Imprevisto
- Pedro Baía (Twitter)
- Shrapnel Contemporary
- Sub Real
- del Tirador a la Ciudad
e outras
Banalidades
Arquivo
-
▼
2009
(298)
-
▼
junho
(25)
- Fim de Junho
- Fresh Ariadna
- A explicação dos pássaros
- Da Cidade e da Justiça
- Arquivo reincidente
- O Síndrome de Viena
- Concurso
- O observador
- Sobre a hesitação de Hans-Jürgen Commerell
- Huckleberry Finn
- Do hábito
- O Museu Carlos Machado
- O Rapto de Proserpina
- Da organização e do poder segundo Malraux
- Método a.s* de avaliação da Casa da Música #1
- A confraria
- Portugal fora de Portugal
- Secção Imobiliário
- A arte da respiração
- Regresso ao futuro
- Serviço Público
- Sobre a acção e a reacção
- Adenda à entrada anterior
- Estado crítico
- Sobre o bom senso e sensibilidade
-
▼
junho
(25)
Tags
- [fev. 2009 - maio 2011]
- a.s*
- Aalto
- Adalberto Dias
- Adalberto Tenreiro
- Agostinho Ricca
- Aires Mateus
- Alexandre Alves Costa
- Alicia Guerrero Yeste
- Alison Smithson
- Alvaro Domingues
- Alvaro Leite Siza
- Alvaro Siza
- Ana Tostões
- Ana Vaz Milheiro
- Anatxu Zabalbeascoa
- André Tavares
- Angelo Invernizzi
- Anna Hering
- António Machado
- António Portugal e Manuel Reis
- Aravena
- Ariadna Cantis
- Arquitectura
- Arx
- Atelier Data
- Atelier do Corvo
- Baixa
- Bak Gordon
- Bakema
- banalidad
- Banalidades
- Barbosa e Guimarães
- Bernard Rudofsky
- Bernardo Rodrigues
- Bonet
- Braula Reis
- Bruno Baldaia
- Bruno Soares
- Buckminster Fuller
- Bunshaft
- Camilo Rebelo
- Candela
- Carlos Castanheira
- Carlos Couto
- Carlos Guimarães
- Carlos Marreiros
- Carlos Sambricio
- Carlos Sant'Ana
- Carlos Veloso
- Carrilho da Graça
- Cassiano Branco
- Charles Correia
- Charles Lee
- Chipperfield
- Cláudio Vilarinho
- Coderch
- Correia Ragazzi
- Correia Rebelo
- Cristina Diaz Moreno
- Cristino da Silva
- CvdB
- Daniel Carrapa
- David Adjaye
- de la Sota
- Delfim Sardo
- Didier Fiúza Faustino
- Diogo Aguiar
- Dulcineia Santos
- e Outras
- Efrén Garcia
- Egas José Vieira
- Eisenman
- Eládio Dieste
- Engelmann
- Enric Ruiz Geli
- Ettore Fagiuoli
- Falcão de Campos
- Federico Garcia Barba
- Fernando Guerra
- Fernando Martins
- Fernando Salvador
- Fernini
- Francisco Barata
- Francisco Castro Rodrigues
- Francisco do Vale
- Fredy Massad
- G. Byrne
- Galiano
- Gehry
- Gonçalo Afonso Dias
- Gonçalo Canto Moniz
- Gregotti
- Hasegawa
- Hejduk
- Hertzberger
- Herzog deMeuron
- Iñaki Ábalos
- Inês Lobo
- Inês Moreira
- Inquérito
- Jacinto Rodrigues
- Jean Nouvel
- João Amaro Correia
- João Belo Rodeia
- João Maia Macedo
- João Mendes Ribeiro
- João Paulo Cardielos
- João Santa Rita
- John Körmeling
- Jorge Figueira
- José Adrião
- José António Cardoso
- José Manuel Fernandes
- José Mateus
- José Miguel Rodrigues
- Judd
- Kahn
- Kaufmann
- Klerk
- Koening
- Kol de Carvalho
- Kramer
- Lautner
- Le Corbusier
- Livros
- Louis Arretche
- Machado Vaz
- Mackintosh
- Mangado
- Manuel Graça Dias
- Manuel Vicente
- Manuela Braga
- Marcos and Marjan
- Massimo Cacciari
- Melnikov
- Menos é Mais
- Mies
- Miguel Figueira
- Miguel Marcelino
- Miralles
- Moov
- Muf
- Nadir Bonaccorso
- Niemeyer
- Norman Foster
- Nuno Brandão Costa
- Nuno Grande
- Nuno Merino Rocha
- Nuno Portas
- Olgiati
- Paulo David
- Paulo Gouveia
- Paulo Mendes
- Paulo Mendes da Rocha
- Pedro Baía
- Pedro Bandeira
- Pedro Barreto
- Pedro Gadanho
- Pedro Jordão
- Pedro Jorge
- Pedro Maurício Borges
- Pedro Pacheco
- Pedro Reis
- Peter Smithson
- Pezo von Ellrichshausen
- Pietilä
- Portoghesi
- Prince Charles
- Quando as Catedrais
- Raul Martins
- Rem Koolhaas
- Ricardo Carvalho
- Richard Spence
- Rossi
- Rui Ramos
- Sáenz de Oiza
- Salgado
- Sami
- Sanaa
- Secil
- Sérgio Rodrigues
- Shulman
- Solano Benítez
- Souto de Moura
- Stefano Riva
- Steven Holl
- Stirling
- Sverre Fehn
- Teotónio Pereira
- Teresa Otto
- Tiago Mota Saraiva
- Toyo Ito
- Unidade
- Utzon
- Van den Broek
- Ventura Trindade
- Venturi
- Victor Figueiredo
- Vitor Mestre
- Vitor Piloto
- Zaha Hadid
- ZT Arq
1 comentários:
"Como se o desenho fosse uma pura perda de tempo. Como se o desenho não instituísse qualquer tipo de valor."
LOL :)
Enviar um comentário