Quando as Catedrais eram Brancas, notas breves sobre arquitectura e outras banalidades, por Pedro Machado Costa

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Da minha Malaparte Privada

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Nunca conheci a Casa Malaparte. Quero dizer: nunca estive em Pizzolungo o que, apesar de tudo, não é a mesma coisa.
Conheço-a, claro; ela faz parte da minha iconolatria privada, sobretudo desde que vi Le Mépris.
Não que o filme a dê perceber. Não lhe consigo desenhar a planta, nem sei muito bem onde fica a porta. Nem sequer consigo descrever as janelas que emolduram o Mediterrâneo, embora desconfie que sejam apenas fruto de uma feliz ingenuidade de quem a fez (seja o Libera, o Malaparte ou o tal sr. Amitrano, pouco importa).



Na verdade o único pedaço da Casa que me perdura na memória é o terraço. Um terraço (cor de tijolo?), sem limites que não os do infinito (azul?), onde, por detrás de uma pequena e ridícula parede semi-côncava , o travelling de Godard revela (pouco a pouco) o corpo nu de Bardot. E depois, depois há a cena em que Bardot, já vestida com um roupão (amarelo?), desce passo-a-passo a magnificência palaciana (palladiana?) da escadaria que desenha a forma definitiva pela qual todos a reconhecemos (à Casa e à Bardot). Este é para mim um dos momentos mais sublimes do cinema, e já agora da arquitectura também.

O que quero dizer é que é custoso perceber a Malaparte sem sentir o perfume da maresia de Capri, para lá daquela pequena e ridícula parede semi-côncava (branca?). Como difícil é saber quão quente fica o chão do terraço, sob os pés nus, numa tarde solarenga de Agosto. Impossível também é vislumbrar o brilho da luz intensa no movimento regular das ondas, mesmo que consigamos imaginar-nos a subir, passo a passo, os degraus longos da escada que nos levam ao seu terraço.
Assim, a acreditar que nunca se deve regressar a um lugar onde fomos um dia felizes, tinha decidido ficar-me pelo Le Mépris; fugindo à tentação de pôr os pés em Capri.
E no entanto, mesmo sem querer, fui dar com ela, ali mesmo, para os lados de Ponta Delgada.

A Casa é difícil de descobrir. É negra, como negro é o leito de pedra onde ela assenta, afastado da estrada que nos traz da cidade até à Lagoa. Por momentos essa camuflagem aparenta ser toda a essência da casa.
Puro engano!
O uso da pedra, negra, nada deve a um jogo infantil de esconde-esconde. Ele é antes um exercício de puro requinte, espartano mas decidido da sua própria robustez; como se quisesse demonstrar a sua perenidade naquele leito rochoso junto ao mar.
Se ao longe a cor negra tudo confunde (leito e casa; casa e ilha), basta percorrermos a pouca distância que separa a estrada do mar, caminhado entre muros aos altos e baixos, para lhe descobrirmos a desenvoltura própria da coisa arquitectónica; como se a Casa fosse uma espécie de Pártenon virado do avesso.














Tal como n'O Desprezo, não é aqui importante descreve-la, à Casa. Não é que as suas duas salas – uma por debaixo da outra; alimentada a primeira por uma janela de esquina que aponta ao infinito do mar; e a segunda aberta para a intimidade de uma piscina que só se descobre por aí – não façam sentir inveja da mão que as desenhou (a inveja é para mim uma espécie de medida das coisas: quanto melhores elas são, mais inveja sinto de não ter sido eu a fazê-las).
Não é que os seus tectos, de madeira (feia), perturbem a fluidez de todo o seu espaço interno, garantindo-lhe simultaneamente uma hierarquia mestra; como que se, por puro paradoxo, cada um dos compartimentos pudesse existir sozinho; mesmo que os não saibamos distinguir uns dos outros. Não é que o engenho da invenção se tenha limitado à aceitação da banalidade; não fosse a sombra perfeitamente delimitada por uma coisa feita de fibra de vidro a prová-lo, na impossibilidade de se ter uma pala feita em betão.
Não é que o seu terraço, feito da mesma vontade que construiu esta outra Malaparte, não seja o sítio mais magnífico de toda a ilha.
Na verdade tudo isso, todos estes sinais, são prova apenas de que quem fez a Casa é senhor da incomensurável sensibilidade que só se encontra na melhor das arquitecturas.

Para aqueles, poucos, que sabem da Casa, ela é conhecida por uma outra coisa. Pela sua história, que poderia ser muito bem o último capítulo da história trágico-marítima: construida a mando de alguém com mais poder do que a linha limite da orla marítima (coisa normal lá nas Ilhas), a casa seria erigida numa cova, (quase) em cima do mar. Nas vesperas da casa ser ocupada, um enorme temporal (outro dos hábitos locais) fez testar a firmeza da ilha. Que resistiu, é certo. O mesmo não aconteceu á Casa: um par de ondas invadiu-a , destruindo a leveza das suas entranhas.















Desde essa altura a Casa jaz abandona a si própria, com a piscina vazia e o terraço expectante. E no entanto, malogrado temporal, todo o requinte com que a Casa é feita, resiste ainda.
A sua silhueta, escondida pelo leito de pedra, parece-nos metáfora da parede semi-côncava (branca?) filmada por Godart.
Por vezes, se olharmos com atenção, sobre o terraço da Casa revela-se-nos o corpo nu de Bardot.

2 comentários:

AM disse...

agora é que é elas vão doer... :)))

Pedro Machado Costa disse...

venham elas. Vais ver que não dói nada.

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