Quando as Catedrais eram Brancas, notas breves sobre arquitectura e outras banalidades, por Pedro Machado Costa

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Ensaio sobre as enciclopédias

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Lembro-me, em criança, de ter ido passar uns dias de férias a casa de alguém que tinha uma enciclopédia. Daquelas enciclopédias enormes, que não havia na minha casa, nem na casa dos meus amigos. Daquelas: que ocupam um sem fim de prateleiras, cheias de pó por falta de uso.

O sítio dessas férias era vagamente aborrecido: não havia praia. nem cidade. Nem mesmo aquele ar de Verão que nos faz querer sair de casa no Verão. Não é que não fizesse calor: era Verão. Mas o calor, por si só, não me diz nada. Sobretudo se estivermos a falar do calor do campo, que mais cedo ou mais tarde se torna um calor aborrecido. Um calor com pó, como o das enciclopédias.
Nessa casa havia, como disse, a tal enciclopédia. Daquelas enciclopédias ilustradas, dividida em muitos volumes, invariavelmente falados em brasileiro; que tinham mapas de países chamados Ceilão. Ou Rodésia.

De resto, nesse Verão, as distracções resumiam-se a um órgão electrónico, daqueles cujo toque nas teclas fazia soar uns sons tubulares, vagamente parecidos com o órgão que anos depois iria ouvir nos discos dos Doors; e a televisão a preto e branco, que apanhava, com chuva, a TVE.

Dessa forma, depois de passar as tardes a tentar tocar, sem grande sucesso, When the Saints Go Marching In (que era a única pauta que por lá andava), ou a ver aquele filme do Tarzan com uma gruta secreta que é afinal um cemitério onde os elefantes vão todos morrer, já um pouco desiludido com o Johnny Weissmuller a falar castelhano, lá abria ao calhas a tal enciclopédia, e passava os olhos pelo passado colonial da Nigéria, ou pela diferença entre um Clipper e um Lugre.

Depois disso nunca mais quis saber de órgãos para nada. Cansei-me, definitivamente, do Tarzan. E no entanto, desses dias estafados de Verão, ficou-me o gosto pelas enciclopédias dos outros. Sobretudo das enciclopédias que têm vários volumes, e estão sempre desactualizadas. E isso faz-me, sempre, ir subtil mas directamente às estantes das pessoas, quando lhes entro em casa, a pretexto de pousar a caneta ou as chaves de casa, à espera de encontrar uma prateleira cheia de mapas da Rodésia ou do Ceilão.

Deve ser por isso que aprecio, com gosto, o trabalho de Francisco do Vale. É uma espécie de enciclopédia, a escrita informada de Vale. Mas é um trabalho quase anacrónico, sem aparente organização, que se torna ainda mais útil, dispensando-nos de abrir ao calhas a Arquitectura Hoje para que nos venha cair às mãos informação desconexa, desligada.
Não há, em Vale, claro, nenhum tipo de subjectivismo, nem intencionalidade para lá da intenção de informar. Tudo é escorreito, e correcto. Sabemos-lhes as fontes e os Links. E gostamos das suas escolhas.
Não há, também, em Francisco do Vale, a vontade de nos embrulhar nas suas idiossincrasias, nem mesmo a tendência, mínima que seja, em nos provocar.

Quer dizer: não havia; até hoje. Até ao momento em que Vale, despudoradamente (gosto da palavra despudor: tem qualquer coisa de amoral), a propósito disto, diz assim :

Bem sei que o interesse de uma enciclopédia é proporcional à sua capacidade de revelar a sua própria desactualização. E no entanto nem a própria desactualização se lembraria de afirmar, tão despudoradamente (lá está) que a qualidade da arquitectura se revela através da sua capacidade em nos oferecer a possibilidade de se beber um café ou de se ler um livro.

Repito, por isso, o que já tinha dito sobre o Pavilhão de Verão da Serpentine: Não deve ser mais do que simples felicidade. Ou uma coincidência. Daquelas coisas que só acontecem uma vez na vida. Um golpe de sorte talvez. Ou então é da língua. Ou do chá. Mas há qualquer coisa que deve explicar o porquê de ter sido preciso esperar tantos anos por um japonês (neste caso são até dois) para fazer melhor que outro japonês.

ps: estava para aqui a tentar lembrar-me se o Tarzan de facto falava, ou se limitava apenas a berrar. É que os berros não se traduzem para castelhano, pois não?

1 comentários:

AM disse...

estão, espantosamente, os dois certos :)))
tu, porque à arquitectura é legítimo pedir mais do que um lugar para beber um cimbalino ou abrir o jornal de notícias :), o Francisco porque aquilo é mesmo (já to tinha dito...) :) muito poucachito (para além dos reflexos nas flute’s da champanhoca e assim...)
lá por ser temporário e efémero não quer dizer que não possa transmitir nenhum dos outros valores (ai a perenidade...) da arquitectura
em resumo: meu rico siza/souto :)))
(uma das melhores últimas obras de cada um dos dois)
já agora (que ninguém me encomendou o comentário), palhaçada é aquela coisa do primeiro japoni... :)

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