Quando as Catedrais eram Brancas, notas breves sobre arquitectura e outras banalidades, por Pedro Machado Costa

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O Museu Imaginário

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Sem título, Nobuyoshi Araki

Mas nem sequer precisávamos de ir ao Malraux. Bastaria pegar numa mão-cheia daquelas obras que nos são essenciais. Daquelas que conhecemos de cor. Que dissecámos vezes sem conta. A que recorremos quando nos surgem dificuldades. Aquelas que explicamos sem pudor algum, e que citamos sempre que nos dá jeito. Basta pegar nelas, e depois fazer as contas: perceber quantas dessas obras – das que conhecemos de cor e dissecámos vezes sem conta – já visitámos.

Dessa mão-cheia (digamos que numa mão-cheia cabem 20 obras, dependendo mais essa medida do tamanho da mão do que propriamente do tamanho das 20 obras) visitámos uma obra. Ou – vá lá - duas, no máximo.
Quer isto dizer que dessa mão-cheia d’obras que nos fizerem ser quem somos apenas cinco (ou – vá lá – dez, no máximo) por cento foram realmente consequentes.

Não que os restantes noventa (ou – vá lá -, no mínimo) noventa e cinco por cento não o sejam também elas consequentes. De todo. São-no, de forma clara e inequívoca. Só que a sua consequência não advém do nosso confronto com a sua realidade, mas exactamente da nossa capacidade em interpretar aquilo que dela conhecemos, e construir sobre ela uma lógica que já pouco (ou nada) tem a ver com a sua dimensão, para passar a ter (apenas) a dimensão que lhe atribuímos.

Não estando evidentemente a usar-me do mais directo dos sentidos a que se refere o termo dimensão; ele não deixa de ser um bom exemplo: sempre que deparamos uma obra que julgávamos conhecer milimetricamente, ela é afinal muito mais pequena, ou muito mais azul, ou muito mais pesada, ou muito melhor do que até então a tínhamos esboçado. Na verdade é outra coisa. Não nos pertence como nos pertencia a ideia que dela tínhamos.
A Querini Stampalia, por exemplo: impossível de ser imaginada em toda a sua enorme complexidade. Mas absolutamente distinta dess’outra complexidade que era só nossa. O Bonjour Tristesse: muito mais pequeno do que o que seria expectável. Machu Picchu: um grandessíssimo estalo.

E no entanto usamo-nos disso. Desse nossa visão limitada das coisas que nos faz repetir os truques que afinal não existiam, ou as soluções que pensávamos evidentes, mas que afinal são apenas fruto da nossa interpretação.

Na verdade ser arquitecto é isso: roubamos aquilo que não existe, pensando copiar segredos que afinal são meras invenções pessoais. Não citamos: equivocamo-nos. É esse o segredo: mesmo quando pensamos estar a copiar, limitamo-nos a inventar outras coisas; não tanto por qualquer tipo de incapacidade de copista, mas apenas por aquilo que pensamos estar a copiar não existe para lá de nós próprios.

Se essa é a nossa maior fraqueza, também é a nossa cultura: falhar interpretações. E é por isso que (por exemplo) a Petersschule (do Hans Meyer) é a peça modernista que mais me enche as medidas, mesmo que o edifício nunca tenha existido.
Sabermos pouco sobre as obras pode não ser bom; é um facto. Mas sabermos pouco sobre as obras não nos diminui as possibilidades de lhe inventarmos probabilidades. Quer dizer: apenas uma ínfima percentagem das obras que nos enchem as medidas existe realmente. Se essas poucas obras são a nossa mais absoluta segurança, todas as outras – as de papel, as que só lhe conhecemos uma planta ou um corte – são o nosso melhor potencial.

É exactamente por essa razão que N. Araki nos é absolutamente indiferente: ao invés de se usar dos Kimonos para nos fazer desejar aquilo que escondem, obriga-nos ao confronto com a sua realidade; bem menos profunda do que seria expectável.

Em tudo o resto - desde o quarto do Kahn às obras do Venturi: conheço-lhes poucas coisas dos projectos e apenas algumas ideias. E ainda assim penso que a resistência aos japoneses é mais ideológica do que propriamente coisa sentida. Coisa obviamente que está para além do mais radical dos romantismos serôdios . Um pré-rafaelitismo, portanto. Dos agudos.

7 comentários:

AM disse...

LOL
só por esta posta já teria valido a pena escrever a minha postazita :)
seria bom que mais alguém comentasse mas a bloga, que digo, o mundo, não merece as nossas postas :) (nem os "artigos" do JF, mas isso é por motivos "exactamente" opostos) :)))
mas, como dizia, a conclusão é hilariante :)
restam-me dois trunfos :)
o primeiro para perguntar se a resistência não é sempre "ideológica"? ou melhor (1.1) se tudo não é, se não é tudo, ideologia...
o segundo para "precisar" (ah, corbu...) :) que está menos em causa a experiência "real" das obras (concerteza que amamos da arquitectura, as suas, dela, representações e, em particular, os seus, dela, "desenhos"...) que está menos em causa a experiência "fenomenológica" das obras que a distância (o "gap") que vai, que fica, entre a tua crítica (felizmente) "violenta" ao valor das obras e a tua admiração por aquilo a que chamas o "projecto" dos Sanaa (e que eu não percebo bem o que seja...)
o que admiro no Venturi no Kahn, no Gehry (e nos outros grandes todos...) é que não há grande ou nenhuma diferença entre os projectos construidos e os que tiveram o azar de...
como é que eu podia admirar o Venturi sem admirar as suas obras?
seria schizo...
por isso... :)
a resistência é ideológica? sim :)
ODP é pré-rafealita? pelo menos :)

Quando as Catedrais eram Brancas disse...

Resposta aos pontos 1.1 e 1.2

1.1 Se não é tudo ideologia. Não. Não é. Na verdade (e lá voltamos ao "nosso desenho") muito pouco é ideologia. Diria mais: a ideologia - muitas vezes associada à arquitectura - só aparece para lhe dar pretexto. Quer dizer: a arquitectura aparece antes da sua própria justificação (como se alguma vez fosse necessária justificá-la). Mesmo o Venturi teria sido bom arquitecto sem ter escrito o Complexidades (e com isso concordarás concerteza). E o Corbu: ainda acham que aquilo que o homem escrevia servia para mais alguma coisa que não justificar as suas prórpias vontades arquitectónicas?
É como lhe digo, A.M.: não é de ideologias que falamos quando falamos de arquitectura.
1.2 No Projecto dos Sanaa a admiração depende evidentemente da extravagancia com que se desenham espaços e organizações, tipologias, e relações; algumas materialidades também. Mas a isso voltaremos conceeteza.

Quando as Catedrais eram Brancas disse...

ps. e deixa lá os :) e etc.; senão o Stefano ainda se chateia a sério. E olha que nunca viste o Stefano chateado a sério.

AM disse...

não deixo nada :)
o Stefano zanga-se a sério ou é só ideologia? :)
o Venturi sem o Complexity nem sequer "existiria" meu caro
(re)lê, por exemplo, em:
http://www.museomagazine.com/issue-14/denise-scott-brown-and-robert-venturi
(estou a ver, mau, muito mau :) que nem sequer leste) :)
a ideologia é superestrutura (de betão) :)
a ideologia está em tudo :)
there is no escape from... ideologia
o Sanaa estão cheio de ideologia (embora não saibam bem qual...), Pedro MC está cheio de ideologia
Stefano R., certamente, concordará :)

a verificação de palavras para esta caixa de comentário é - LOL - "shiso" :)

AM disse...

e não interessa se a "teorização" (ovo ou galinha) surge antes ou depois
ela, a ideologia, está lá
desde sempre :)

Anónimo disse...

90% das obras que tenho no meu imaginário, nunca as visitei... Mas sempre que um arquitecto projecta algo, serve-se apenas da sua memória. Não não raras vezes deve-se espantar com a realidade da construção do que imaginou. Penso que é um assunto muito interessante e merecia ser explorado

do outro lado disse...

irrita me a serio não é uma questão ideologica é mais estetica , AM esquece a linguagem tipo messanger...
Pelo resto concordo comtudo ou quasi

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