Quando as Catedrais eram Brancas, notas breves sobre arquitectura e outras banalidades, por Pedro Machado Costa

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Uma mão cheia de tudo, outra de coisa nenhuma

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A propósito do (previsível) Pritzker dei por mim a reler Oceano de Ar; uma espécie de tentativa de categorização do trabalho da dupla Sejima Nishzawa, escrita por Efrén Garcia e Cristina Diaz Moreno (os responsáveis pelo Cero 9), publicado na El Croquis 121/122, em 2004. Se na entrevista que precede e introduz o curto ensaio nada é dito que explique a evidente particularidade do universo do atelier japonês (na entrevista os projectos são explicados pela circunstancialidade – programática, funcional - de cada um, mais do que aquilo que os obriga e qualifica), já Oceano de Ar pega no pouco que Nishzawa deixa solto para sustentar um discurso que passa em muito por vincular a sua obra à tentativa, deliberada, de anular aquilo que de algum modo nos é ainda basilar na formulação arquitectónica: a hierarquia.

Mais do que as fugidias palavras de Nishzawa, a tese de Éfren e Cristina poderia até vir da formulação prévia de Y. Hasegawa – Space that obliterates and erases programs – sobre as primeiras obras de Sejima (ainda antes de se associar a Nishzawa) onde se apontam, entre outros factos, a libertação das noções arquitectónicas normais (?), a destruição (Hasegawa usa o termo desconstrução) das divisões (compartimentos com especificidade programática, entendo) e das hierarquias convencionais (lá está), e a progressiva anulação de uma determinada ordem superior em relação àquilo que os edifícios contêm (quer dizer: a ausência de um critério de importância entre questões de forma e, por exemplo, o modo como deverá instalar-se determinado sistema de ar condicionado).
E o entanto Oceano de Ar procura implicar os projectos do Sanaa numa espécie de estratégia fenomenológica cuja força advém mais do modo como cada um interpreta aquilo que se lhe depara, do que propriamente aquilo que lhe é directamente dado a experimentar; que – quer por Efrén Garcia/Cristina Diaz Moreno, como por Hasegawa – é, simplesmente, aquilo que este mais próximo do nada. Ora, isso equivale nada mais nada menos a afirmar que a qualidade de uma determinada arquitectura é exactamente a sua não existência (é curioso, neste ponto, relembrar que Pallasmaa faz parte do jurí do Priztker 2010, o que em certo sentido reforça esse sentimento fenomenológico).

Os espanhóis, no seu texto, chegam a referir algo curioso – totalmente incompreensível pela parte que nos toca – de modo a enfatizar essa ideia, ingenuamente interpretada de Zen (bastaria a Figueira ter lido o que diz Sejima à provocação sobre a eventualidade da relação entre supressão asceta da sua obra e o desejo de perfeição espiritual da filosofia Zen, levantada por Juan António Cortés, na entrevista da El Croquis de 2007), onde a razão das coisas deixa de ser universal (leia-se: comum), centrando-se apenas na experiência individual. Afirmam que dos edifícios não transparece qualquer ideia. Nem mesmo o processo de projecto que lhe é intrínseco. Ou mesmo a história.

Não é que deixe de concordar com essa suposta ausência de hierarquia na obra do Sanaa (embora se deva dizer que, tirando as devidas referências culturais e especificidades, os textos bem podiam estar a referir-se, um e outro, a Mies; mas enfim...), seja ela histórica, programática ou construtiva, mas no entanto não é isso que a explica. Ou pelo menos não é isso que a significa a nossos olhos.
Bem sei que estou em desvantagem perante Éfran, Cristina ou Hasegawa: tirando uma fugaz passagem pelo museu da Bowery ainda por acabar, nunca tive oportunidade de experimentar qualquer edifício da dupla; o que, pela tese fenomenológica defendida nos tais textos, implica a impossibilidade de as perceber, às obras do Sanaa. E no entanto até estou capaz de apostar que a importância, para nós, dessas obras não reside propriamente na sua existência, mas naquilo que as precede.

Na verdade aquilo que se torna imprescindível nos projectos de Sejima/Nishizawa é exactamente isso mesmo: os projectos. Ou antes: o modo de os formular.
Claro. Evidentemente. Aquilo que lhes sobressai, aos projectos, é essa aparente falta de estrutura hierárquica – que é mais a sua supressão do que outra coisa qualquer; mas que é mais o resultado da abordagem metodológica – arriscaria a dizer: disciplinar; mais: intrínseca e estritamente disciplinar – do que propriamente uma preposição ideológica em si mesma.
Aqui não há lugar a nada que não seja a arquitectura ela própria; e os projectos não mais são do que esse resultado de deitar fora tudo o que dela não faz parte; concedendo-lhe essa aparente pureza formal (o suposto Zen de Figueira), que não mais é do que o resultado do processo.
Ora, na obra do Sanaa (e não estou aqui à procura de qualquer tipo de provocação) aquilo que menos (me) interessa é exactamente esse resultado espartano, demasiadas vezes pobre, desconfortavelmente imaterial, muitas vezes atonal, quase sempre mudo.
Desconfio, aliás, que a popularidade do Sanaa no ocidente (desde os estudantes dos mestrados pós-bolonha aos senhores do Pritzker) não se deva propriamente à intensidade do Bloco de Apartamentos de Funabashi (2004), do Edifício Asihi Shimbun Yamagata (2003), nem sequer (pecado) do Museu em Kanazawa (2004) – isto para nem sequer ir aos mais bem amados Pavilhões da Serpentine (2010) ou de Toledo (2006); mas exactamente a suprema inteligência e extrema liberdade com que a dupla se permite inventar o projecto de arquitectura.

O que quero dizer é que a importância do Museu de Kanazawa reside muito mais no seu projecto, e muito menos no edifício, que em muitos aspectos se revela banal (no pior dos sentidos). Aprende-se muito mais a olhar para os desenhos do Bloco de Gifu Kitagata (1998) do que a passar os olhos pelas suas fotografias. Agradece-se a quem tomou a decisão de não ter construído o Café do Parque Lumiere (1999) ou, mais ainda, à ampliação do IVAM, em Valência. Para nós tinha sido muito melhor não ter visto fotografias do Rolex Learning Center (2010) ou daquela maravilhosa Casa Pequena (2000); porque, simplesmente, a construção mental que delas fazíamos era muito mais útil – atraente, desejável – do que aquelas a sua existência propõe.
O Kunstlinie (2006), por exemplo, é bem pior do que muita da coisa que tendemos a menorizar. Do Terminal de Naoshima nem o olhar de Suzuki o consegue tornar minimamente tangível. E aquela clínica dental em Tsuyama levanta-nos sérias dúvidas sobre a capacidade dos seus autores em dominar matérias tão simples como a escala ou a proporção.
E no entanto nada disto diminui a soberba e sublime obra dessa dupla de japoneses; cujo contributo disciplinar nos foi – nos é cada vez mais – decisivo.

Se assentirmos a tese da ausência hierárquica; então ela é um pau de dois bicos: aquilo que faz das obras de Sejima/Nishizawa coisas aparentemente amorfas, sem intensidade ou peso, paupérrimas, despojadas de conforto e incapazes de comunicar é exactamente o mesmo que torna as suas propostas arquitectónicas num dos fenómenos com maior importância disciplinar na última década. É por estas e outras que o Pritzker não é um prémio como os outros.

E depois...depois há a Escola de Zollverein, que faz questão em negar tudo aquilo que dissémos. E essa promessa do Museu-N; que sim: importa construir. Nem que seja para um definitivo tira-teimas.

Ps. Um dia destes alguém deveria falar de coisas tão curiosas como a sentida presença de Toyo Ito no percurso do Sanaa. E também na súbita consciência dos senhores do Pritzker, depois de terem premiado muito daquilo que irá marcar negativamente a arquitectura do início do século.

4 comentários:

Dioniso disse...

Finalmente uma CRÍTICA ao Pritzker! A blogosfera já gritava por socorro... Obrigado.

Uma interessante sugestão de leitura para fazer a aproximação à obra dos SANAA: http://www2.arquitecturaviva.com/Antiguos/AVMonografias121.asp

AM disse...

postei rumores, no ODP

Anónimo disse...

Muito pertinente, parece-me (não sou da área). Sugiro cruzar com Barthes, «L'empire des signes» (para que saiba ao que vai, o texto «Empire of empty signs» dá-lhe uma ideia: http://tinyurl.com/yzpf4j5).

Anónimo disse...

Uma visão tanto ao quanto tanto. Mas pouco de tanto, pois, porque por enquanto, a boa arquitectura sempre dispensou intelectualizações, comissários e protagonismos pouco tanto.

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