Quando as Catedrais eram Brancas, notas breves sobre arquitectura e outras banalidades, por Pedro Machado Costa

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O Homem que não sabia (o que era) desenhar

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Poderia até ser que sim: que estivessemos perante um equívoco. Ou então de um simples problema de comunicação. No entanto não será previsivel que a um tão prolífico diletante seja estranho o significado do desenho para a arquitectura. Sobretudo para quem sustenta exactamente as suas crenças na capacidade do desenho como fundamento arquitectónico; nem que fosse pelo simples facto desse seu endeusado ser um exemlplo maior do arquitecto que faz depender a qualidade da sua obra – dos seus edifícios, entenda-se – da qualidade do desenho: “a lareira, situada do centro para a retaguarda, é um foco para as paredes diagonais, que irradiam dali, no ínicio simetricamente, para formar os espaços interiores (…) o telhado é de trÊs e de duas águas ao mesmo tempo, e a sua simetria original é distorcida nas extremidades do edifício” (descrição de uma obra de Venturi pelo próprio, numa página aberta ao acaso do Complexidades; em tradução livre).

Vamos a factos: afirma António Machado, categoricamente: Hejduk não sabe desenhar. E exibe, como a querer provar alguma coisa, esse desenho de Hejduk, provavelmente tirado do Vladivostok, onde um conjunto de esquissos, trapalhões, se amontoam deselegantemente numa folha de papel.
De facto Machado tem razão. Nesse desenho, como aliás quase todos os desenhos publicados no Vladivostok – e só falo neste livro por ser o único de Hejduk que tenho aqui à mão -, adivinha-se alguém que não se sente propriamente à vontade com uma caneta na mão. Os desenhos de Hejduk são toscos. Pouco seguros. Demasiado rabiscados para alguém que saiba de facto desenhar.
Tal facto torna-se ainda mais evidente se passarmos os olhos pelos desenhos de Hejduk onde aparecem figuras humanas. Alguns dos corpos são grotescos. Quase todas desproporcionados. De traço descontrolado, pouco sensível às formas que pretendem ser representadas. As faces são representadas de forma ingénua. As mãos e os pés – naturalmente díficeis de representar – aparecem disformes, muitas vezes inacabadas.
Assim sendo, Machado teria razão: Hejduk é um desenhador mediocre.

O problema é que Machado se equivocou, ao remeter a sua análise a um ponto de vista eminentemente externo à disciplina que advoga; facto esse no mínimo estranho a quem – creio – defende o primado da arquitectura.
Na há uma distinção fundamental entre o desenho per se – coisa romântica, vagamente canonizada, e muito mais próxima das chamadas artes plásticas – e o desenho como instrumento de pensamento da arquitectura
Aparentemente a arquitectura (quase) sempre se usou do desenho; mas como instrumento operativo, e não enquanto (simples) sistema autónomo de representação, de ilustração, ou de registo (ainda assim o exemplo mais difundido).
Assim sendo afirmar que alguém desenha mal não encontra paralelismo na afirmação que determinado arquitecto desenha mal. Desenhar mal em arquitectura é outra coisa: é fazer edifícios mal desenhados, mal proporcionados, mal amados.
Se é verdade que há, hoje ainda, arquitectos que desenhando bem também fazem belos desenhos (sendo Siza um exemplo de autor com jeito para o desenho); também não deixa de ser verdade que essa capacidade de pegar na caneta muito pouco tem a ver com essa outra capacidade (ou educação, se quisermos pôr as coisas de uma forma mais académica) em desenhar arquitectura. Exemplo, só um, querido a AM: Manuel Vicente: esse homem cuja dificuldade endémica em pegar num qualquer instrumento de desenho não lhe retira qualquer capacidade em pensar de forma brilhante, muito menos em desenhar belas peças de arquitectura.

Continuando no universo preferencial de Machado: "prefiro os esquiços (o autor usa o c grafado, ao invés dos dois esses) hesitantes, despenteados, cheios de promessas e com vagas mas atraentes insinuações em relação ao que nos espera. Desconfio de desenhos muito novos e já cheios de texturas, materiais e janelas pré-inventadas". O texto, citado, vem num livrinho de 1988, chamado de 3 Bocados, da autoria de Manuel Graça Dias.

Quer isto dizer: pouco importa para um arquitecto (e é, Machado, de arquitectura que falamos quando falamos de desenho) desenhar bem ou desenhar menos bem. Fazer esquissos mal amanhados ou formas emolduráveis numa qualquer galeria. Saber, ou não, pegar na caneta. Ter formação beauxartiana, daquela que nos obrigava a desenhar corpos nús pelas salas da escola do Porto. Fazer, no papel, uma cara parecida com a cara que temos à nossa frente, ou uma casa, ou um carro. Porque aquilo que nos é exigido é, simplesmente, o de desenhar (e isso sim: bem) um edifício.
E isso, concorde-se, tem muito pouco a ver com o saber pegar numa caneta.

Não creio contudo que Machado, a olhar para o desenho de Hejduk e afirmar-lhe a sua incapacidade, esteja a ser assim tão ingénuo quanto aparentemente o demonstra. Aliás, adivinho-lhe antes um súbito ataque de Cinzentismo, a relembrar os Five on Five (ver Architectural Forum, Maio de ’73), na sua Venturice crónica. Pretenderá Machado provar a superioridade da crença sobre o niilismo moderno?
Saiba Machado que embora a relevância de Venturi etc. nos seja indiscutível, tal facto permite-nos ainda assim toldar a nossa capacidade de abranger – e porque não, de admirar – universos opostos.


De Hejduk, para lá dos edifícios que infelizmente nunca me foram permitidos presenciar, há um livrito que (me) é particularmente caro: Notes for the Education of an Architect.

4 comentários:

AM disse...

é pá... tanta coisa... :)
a única coisa que eu afirmo, e que repito, as vezes que forem necessárias :) é que o Hejduk não sabia desenhar :)
ou seja, que o Hedjuk não tinha "jeito" para o desenho
como arquitecto não me derrete :) mas posso dizer que gosto muito das obras de Berlim (estive este final de tarde a estudar as planta dos apartamentos das "bandas" que ladeiam a "torre" e são - "otimas"! - do camandro!) :)
um "bom" arquitecto "moderno", destes do nosso tempo, pode não saber desenhar (no sentido de não ter "jeito" para o desenho etc.) mas lá que o "jeito" ajuda, ajuda... :)
não concordo contigo, e talvez seja aqui que bate o ponto, quando afirmas que "não há uma distinção fundamental" entre o "desenho pelo desenho" e o "desenho de arquitectura"
eu acho que existe um... abismo :)))
já que vais buscar um MGD da segunda metade dos 80's :) remeto para o pequeno mas (por isso mesmo..) utilíssimo texto de Raul Hestnes Ferreira na "Arquitectura Portuguesa" de 1986 (...) dedicada (precisamente...) aos "desenhos de arquitectos"...
começa assim: "O desenho constitui um meio para mim de aproximação da obra construída (...)", ou seja, o desenho é "um meio para um fim"
termina (assado): "Quando me apetece o desenho pelo desenho prefiro fantasiar paisagens e retratos míticos, o que ao fim e ao cabo também tem muito a ver com a arquitectura"
penso que é... esclarecedor...
no mesmo número pergunta José Lamas: "Saberão os arquitectos desenhar?"
o Hejduk não :)))

sobre o cinzentismo e outras lições ("saiba Machado") :) saiba :) que não me aquecem nem arrefecem :)
as postas do Machado não provam nada :) e muito menos (Deus me livre...) da "superioridade da crença sobre o niilismo"... :)))

Francisco do Vale disse...

Podem continuar... :)

Quando as Catedrais eram Brancas disse...

Am: a resposta já a seguir.
Francisco: que tal um contributo lá pelos lados d'Arquitectura d'Hoje

Francisco do Vale disse...

Já escrevi sobre o assunto, não no blogue, mas para mim... tlv faça uma "posta"... de todo o modo e resumidamente, não acredito na hegemonia da técnica, neste caso o desenho de estudo, sobre o pensamento e o produto que deste advém, na arquitectura .

(Quando falo de técnica, falo de traço, modos de fazer, e não do domínio da escala e proporção... estes são inegociáveis.)

O desenho em arquitectura, e não só, é um mecanismo de apoio ao raciocínio, um meio para um fim, ou finalidade. Não para chegar a um fim! Mas para um fim, pensar!

Este pode mesmo ser um elo comunicativo entre ego e alter-ego... Uma "luta" desenfreada, repleta de paradoxos, simbolos e vícios própios.

Podendo assumir contornos entre o estudo e o mero repositório de ideas vãs... Isto é, pode ser muita coisa, e inicialmente o melhor é mesmo que assim seja. Não ser demasiado comprometido, com algo que ainda nao se sabe o que poderá ser de facto..

Por isso, a rudeza de um desenho, mesmo que técnicamente muito frágil ou naif, não elimina o facto deste poder carregar em si informação vital para o inicio de um projecto. Mesmo que apenas descodificável pelo autor... este poderá sempre repassa-la e descodifica-la por outros canais de comunicação sem que ela se perca, pois já a registou préviamente. Já pensou.

Logo a ligação desenho de estudo e projecto nem sempre é clara.

Não me parece assim que seja directamente proporcional a qualidade de uma obra construida com a qualidade do desenho... Acredito sim que quem desenhe melhor, tenha em si a capacidade de poder compilar mais e melhor informação, raciocinar mais claramente e assim não perder informação importante. Mas isso pode também não acontecer... A história está repleta de optimos desenhadores que nunca deram optimos pintores, escultores, arquitectos... Habilidosos que nunca deram futebolistas :)

Acredito mais na clareza do pensamento do que na clarividência do desenho (acontecimentos que se podem unir a qualquer momento). Na emoçao.

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