Quando as Catedrais eram Brancas, notas breves sobre arquitectura e outras banalidades, por Pedro Machado Costa

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O Mandarim

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Em segundo lugar, porque apesar de tudo sofria ainda desse misto de ingenuidade e de arrogância que me fazia procurar não entender aquilo que perante nós, desmesuradamente, se exibia.














Templo, Taipa.


Em terceiro e último lugar, porque o tempo não tinha de facto ajudado a considerá-la, a ela, enquanto tal.
Esse tempo lânguido, apegadiço, que nos fazia gotejar à medida que caminhávamos sob um céu sempre amarelado, por d’entre ruas e becos com nomes já difíceis de encontrar em qualquer outra cidade: Pátio da Claridade (Kuóng Fôk Vâi), o da Eterna Felicidade (Vêng Fôk Vâi) ou o da Ilusão (Vân Kok Vâi), a Calçada da Surpresa (Ngõk C’hé Hóng), a Travessa do Sancho Pança (Lou T’ou Hong) ali bem perto do Pátio do Bem Estar (Mán Ón Tói), ou a Escada das Árvores (Sü Môk Hóng).
E também esse outro tempo, infinito, passado entre um atelier sem janelas e as outras noites, as que nos restavam, bem mais profícuas daquela facilidade que faz dela vício inebriante.





















Uma rua qualquer, em busca da lavandaria.

No começo aparentava ser uma cidade com as entranhas de fora.
Um pouco como o que se passava naquela espécie de prostíbulos self-service, onde mulheres desnudadas, numeradas e arrumadas por detrás de um espelho, aguardavam alguém que as reclamasse; toda a cidade parecia revelar o seu íntimo.
O que na verdade constituía uma formidável armadilha, a primeira na qual todos nós éramos ludibriados antes mesmo de percebermos que a água da chuva nos dava já pela altura dos joelhos, lá para os lados do Porto Interior, por alturas das monções do fim de Agosto.





















D'O Livro das Delícias e dos Amores, que podia perfeitamente ser o guia da cidade.

Os odores também confundiam os primeiros dias. Toda essa panóplia de perfumes, diversos de esquina para esquina, mas uniformemente nauseantes para os recém-chegados.
O cheiro da comida acabada de fazer, dos animais dormentes, do incenso queimado e da pólvora dos panchões e, sobretudo, o cheiro dos corpos; o suor das gentes que nos cruzavam numa azáfama repentina, esses corpos que achavam nas ruas aconchego suficiente para as terem como casa.














Por debaixo das arcadas do Porto Interior.

As gentes daqui, tal como viríamos a descobrir, seguiam os hábitos do resto do continente: a rua era, é ainda, o seu lugar privilegiado.
Ali trabalham, ali comem, riem e discutem, ali jogam, dormem e ali esperam, fazendo-nos duvidar desse nossa noção de privacidade; ao mesmo tempo que procurávamos entender por donde se teriam desvanecido todos os restantes 21 habitantes cujas estatísticas demográficas mais recentes asseguravam ocupar o mesmo metro quadrado de solo onde nos encontrávamos a cada momento.

Quem sabe, talvez essa multidão escapasse pelos múltiplos andares que desenham esse singular e maciço skyline; explicando porventura o regime de cama-quente no qual duas insondáveis famílias partilhavam o pequeno apartamento que me era vizinho.





















Prédio com fachada acrescentada.

Sendo o interior das casas coisa inexpugnável ao olhar alheio, os sinais particulares, ostensivos, viravam-se no entanto, também, para as ruas; concorrendo com a trepidação dos néons luminosos que todas as noites me invadiam o quarto.

Nos prédios qualquer abertura para o exterior, fosse janela ou porta, encontrava-se encerrada por meio de grades de forma e desenho heterodoxo.
Invariavelmente prostradas no lado de fora das fachadas, cada uma de diferente cor, trama e forma, acidentalmente dispersas por todos os prédios, somente fruto do arbítrio individual, permitiam a cada habitante exibir a suposta existência de algo invejável no interior de cada casa; como se fosse uma fortuna de segredo propositadamente mal guardado.
Era pelo menos o sonho de algum dia a alcançar.






















Areia Preta, Fábricas verticais
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Se a esta justaposição de grades de feitio e cor desproporcionadamente atraentes, somarmos uma outra feita de emaranhados de canos de água e de esgoto, de fios eléctricos, aparelhos de ar condicionado e cabos telefónicos – coisas que por aqui, habitualmente, ficavam-se pelo exterior das fachadas; como que uma caricata paródia do Beaubourg de Paris -, podemos ter uma (vaga) ideia da verdadeira expressão arquitectónica dos edifícios; aquela que por momentos esconde a confrangedora banalidade do seu desenho original.















Vista para norte, a partir da Fortaleza do Monte.

O problema, no entanto, começava precisamente aí: o de distinguir, entre esse amontoado de trivialidade ordinária, aquelas pequenas coisas que fariam o verdadeiro acontecer da cidade.

Por momentos, admitamos, no decurso dos primeiros meses julgámos até que a sua singularidade se devia exclusivamente ao artifício da luz; aquele brilho que nos autorizava a desprezar a diferença entre noite e dia, permitindo-nos encontrar a qualquer hora uma multidão de coisas a acontecer.
Mas depois, lentamente, desconfiávamos que essa facilidade de lhe tocar era tão ilusória quanto as horas de prazer compradas em qualquer hotel ou sala de jogo.
Se a cidade prometia condescendência a quem a olhasse ao longe, o seu íntimo revelar-se-ia bem mais cioso dos seus segredos.
A melhor demonstração desse paradoxo, a mais terrível também, era-nos dada a partir da vizinha Zhuhai: por detrás de um muro alto e inexpugnável a quem não tivesse passaporte, e durante a noite sobretudo, a sua gloria exibia-se mais provocante que nunca, leviana de cores e luzes, alguns sons também.
Para muitos, para aqueles que consumiam horas com o olhar cravado na distância do seu horizonte acidentado, essa facilidade permaneceria para todo o sempre o mistério mais difícil de alcançar; o que, mesmo assim, ajudava a não renunciar ao desejo de algum dia a possuir.

Para nós no entanto, mesmo que fazendo parte daqueles poucos capazes de atravessar a fronteira mantendo o ar imprevidente que é comum aos estrangeiros de pouca ou nenhuma obrigação, a euforia de lá chegar esbarrava, mais cedo ou mais tarde, no enleio dado pelo invulgar ecletismo que lhe desenhava um perfil tanto ou quanto amorfo.





















Fachada, Porto Interior

Não que isso significasse qualquer impossibilidade de distinguir por dentre essa amálgama construída uma certa ideia de organização, próxima até, se quisermos, daquela ideia de cidade que nos explicada nos manuais escolares.

As suas camadas eram, e ainda o são perfeitamente reconhecíveis: a cidade linear, quinhentista, ligando naturalmente todos aqueles lugares mais ou menos evidentes que despontaram entre as duas baías (a Baía da Praia Grande, ocidentalizada, virada para o mar barrento e para as suas duas ilhas; e a do Porto Interior, mais próxima do burburinho das gentes locais, também de águas turvas, que daí deixava entrever as colinas do sul da China quando apanhávamos o barco da noite para Cantão); depois, todo aquele reticulado de avenidas largas e (só) aparentemente paralelas entre si que, para fugir aos declives, faziam enganar o mais promissor sentido de orientação (pretexto, enfim, para mais uma vez nos extraviarmos pelas suas noites húmidas a velozes, imitando os Anjos de Wong Kar Way); e, por fim, todo aquele engenho que inventava aqui e acolá pedaços de terra onde até então nada (a não ser o mar barrento) existia, e que fazia dos seus limites coisas sempre discutível, ao mesmo tempo que permitia práticas urbanas de duvidosa mestria.

Só que, se essas camadas eram de algum modo singularmente perceptíveis, o seu todo tornava-se difícil de contar; o que porventura explica que as suas representações mais famosas sejam ainda as de Chinnery, feitas num séc. XIX estável e ainda cauteloso.

Tudo afinal se tinha transformado; e continuava a mudar constantemente.
Ouvir descrevê-la por alguém que tivesse partido há já uma década tornava-se por isso, sobretudo, numa distracção mordaz: nada já lhe era comparável; a cidade tinha-se capacitado desse poder de se contradizer ela própria, como que num exercício autófago.
Paradigma disso era o Farol da Guia. Outrora marco luminoso para as embarcações que se acercavam vindas do Japão e da Europa - as de baixo calado, entenda-se, porque os barcos maiores, impedidos de progredir nas águas rasas e lamacentas do seu porto iriam, a partir das guerras do ópio, transformar a baía de Hong-Kong no centro nevrálgico de todo o Delta, retirando-lhe a ela qualquer autoridade que não a anuída pelo jogo e pelo sexo -; ao farol restava-lha apenas iluminar, uma vez por ano, a corrida de carros que atravessa ruidosamente um bairro agora central da cidade.
E, tal como esse farol, vários edifícios pensados como primeira linha de costa viam-se agora ser erigidos a uma centena de metros da água, esventrados de qualquer possibilidade de congruência com o fim a que tinham sido destinados.















Coloane, Porto de Pesca, Chinnery

Esta volubilidade, espantosa para qualquer um habituado à permanência, era no entanto, apenas, uma amostra daquelas cidades instantâneas que se experimentavam do outro lado da fronteira: onde há apenas um punhado de anos existiam montes escarpados visitávamos agora uma extensa planície plantada de largas avenidas, expectante apenas de profícuos arranha-céus e dos seus milhares de habitantes.

Devo dizer que, tendo sabido previamente das lições de Las Vegas, esperava um pouco mais de astucia da minha parte.
Estaria, claro, a contar descortinar esse exercício requintado que me garantem ser, ainda hoje, o sua arquitectura; até porque (a explicação tem a sua lógica) não haverá lá outra expressão autónoma, outra criação poética que não ela própria; enquanto estrutura física, enquanto cidade. No entanto parecia-nos antes de tudo uma enorme amálgama; de tal forma que nos era particularmente custoso distinguir a sua própria origem, mesmo quando estávamos perante aquelas arcadas dos palacetes de frente, cuja fisionomia neoclássica sempre me pôs ao desconfio.

Somente em momentos singulares (os melhores e os piores, entenda-se) pudémos constatar da clara existência desse arbítrio arquitectónico que nos toca, a nós, em particular; se bem que tal facto não fosse sinónimo de pureza alguma: mesmo que se tratasse da mais simbólica presença ocidental do território (dizia-se ex-libris patrimonial), por detrás da composição típica das igrejas genovesas da segunda metade do séc. XVI, depressa apurávamos um imbricado de cenas e figuras chinesas, algumas japonesas também.




























Coloane: Cenário para um filme sobre a Baía Grande; em cima: ponto de vista da câmara de filmar; em baixo: maqueta.

Depois porque a sua própria matéria, aquilo do qual a melhor arquitectura era feita, revelava-se-nos inexpugnável à nossa curiosidade.
Mas o erro era apenas um: o da nossa incapacidade de interpretar.

Porque, mais uma vez por arrogância, não a queria ter em conta, a ela, como argumento possível de pôr em prática a arquitectura; feia, por vezes deformada, ostensivamente decorada por múltiplas apropriações, parecia-nos cosida com a mais banal linha do mundo, e também muito pouco preocupada com tudo aquilo que julgava acreditar.
No entanto, por breves momentos, enquanto as glórias por mim decoradas num cada vez mais longínquo Porto iam subindo todos os patamares, tornando-se as suas finas linhas pasto para certa mediocridade universitária exibir uma inteligência que nunca teve, essa discreta mas violenta aura que se revelava por dentre aquilo que julgava ser apenas banal fazia-me agora duvidar de tudo o que supus um dia saber inventar.

Por momentos tal facto sugeriu-nos um outro nome bem mais reconhecível àquele mandarim que Eça descreveu um dia:















No fundo da China existe um mandarim mais rico que todos os reis de que a fábula ou a história contam.
Dele nada conheces, nem o nome, nem o semblante, nem a seda de que se veste.
Para que tu herdes os seus cabedais infindáveis, basta que toques essa campainha (...) e tu verás a teus pés mais ouro do que pode sonhar a ambição de um avaro.
Tu, que me lês e és um homem mortal, tocarás tu a campainha
?
E então, de súbito, compreendemos esse facto maravilhoso: o da impossibilidade de explicarmos a arquitectura de Macau.

Primeiro, por ela ser impenetrável a qualquer olhar que não partilhasse da astúcia desse Mandarim.

2 comentários:

alma disse...

Lindíssimo, nunca tinha lido uma descrição tão bonita e vivida sobre macau !

alma disse...

gosto da feliz associação :) MADARIM /MANUEL VICENTE/EÇA

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