Relativamente ás palavras de Mário André e de António Machado a propósito Do Desenho, julgo que não me fiz entender à primeira.
A ver: a inteligência do desenho [poderá] implica[r] a inteligência da intenção, a inteligência da ideia, e a do programa; se quiserem: também da adequação e da atenção ao lugar [embora tenha reservas quanto a isso].
Quer isto dizer: a inteligência do desenho seria, em tese, inversamente proporcional à “destruição” da [nossa] paisagem; pela simples razão que estávamos [estamos] a falar de arquitectura, e não tanto de coisas que ás vezes, de olhos fechados, com ela se aparentam; e que, por tal facto, não vale a pena serem motivo de confusão.
E no entanto, como que paradoxalmente, a arquitectura garante a si própria um tão grande grau de autonomia que, em limite, poderíamos discordar da discordância de Mário André: a arquitectura destrói a paisagem sim senhor. E ainda bem.
Porque a arquitectura é feita contra todos. Porque a arquitectura não precisa de explicar, nem de se explicar, pela paisagem.
Trata-se afinal de uma actividade que destrói uma determinada realidade; e a única polémica que podemos ter acerca disso será sobre a (melhor) forma de o fazer: de destruir a realidade ou, por outras palavras, essa tão bucólica paisagem tão que Mário André ainda ousa perseguir.
Se restar paisagem depois da arquitectura, essa paisagem será aquela que a arquitectura cria; porque na verdade não há [e isso seria uma conversa muito longa, mesmo muito longa] paisagem sem arquitectura.
Não me parece por isso que falar de desenho quando se fala de arquitectura seja redutor.
De todo.
Afinal [a inteligência d]o desenho é a única possibilidade de a arquitectura ser. Porque o desenho arrasta naturalmente, e sem grandes presunções literárias, essa coisa que António Machado apelida de Corpo Histórico, ou de Disciplina; porque o desenho é ele próprio o instrumento de erudição que a arquitectura detém como princípio e, sobretudo, como fim em si.
Bem sei que a teoria e a história abundam lá pela cabeça de António Machado, reconhecendo, claro, que também me distrai passar os olhos por esses sagrados tomos de cabeceira que todo o arquitecto diz ter lido. Afinal são eles que nos ajudam a perceber aquilo que não conseguimos depreender de outra forma: a leitura do desenho.
Mas descanso: a defesa da teoria não é, em António Machado, um priorado.
Afinal é António o primeiro a saltar em defesa do desenho; desse simples desenho que tudo garante, e que tudo abrange, em casos onde isso é gritante. Ou não fosse essa mui admirada Fundação Ibero-Camargo a mais expedida explicação sobre a natureza desse “redutor” desenho que despreza a paisagem, porque a reinventa; que é erudito, porque garante a manutenção desse aprazível corpo teórico-histórico; que o uso, de forma lúdica e descomprometida; que o inverte, e o devolve, perturbado e confuso, num tabuleiro de marfim.
[passagem subtil para A Arquitectura da Moral]
Na verdade a origem deste doce embate é outra: a da Casa do Gerês, que sim: é desenho. Erudito. E nesse sentido, independentemente de lhe conseguirmos ou não tomar o gosto, a altercação de António Machado é um tanto ou quanto desprevenida. Ou, enfim, precipitada.
Na verdade tanto (me) faz se a casa acompanha esse zeitgeist mais ou menos displicente. Porque, ao contrário dos outros exemplos que António refere [a que se somam concerteza mais uns quantos], a casa é devedora de uma qualidade de desenho que a torna numa peça exemplar de arquitectura.
É que, quanto a mim, o problema da obra da Correia Ragazzi [que não é assim tanto pós-Souto de Moura como AM afirma; dado Graça Correia ser, porventura, a sua mais fiel discípula: vejam-se os seus esquissos, iguais, mesmo nos erros perspecticos, aos de Souto de Moura] inscreve-se exactamente na ideia defendida por Mário André.
Ou seja: a paisagem enquanto tema.
Ou seja: a explicação da arquitectura através de algo que lhe é intrinsecamente externo.
O que é, afirmo, um engano. Alias, um duplo engano.
Casa do Lousado, Correia Ragazzi, 2008; via Architectural Grammar
Marcel Breuer, Preton Robinson House, 1947, via Smithsonian Archives (que se recomendam vivamente)
De igual modo duvido que o facto do piso superior da Casa do Lousado ser totalmente fechado para o exterior (com excepção do pátio, aberto apenas por cima) se explique pela recusa em lidar visualmente com a “feia” paisagem que se desenvolve ao fundo, para lá da margem do rio, enquanto o piso inferior procura a verdejante próxima, num maternal e romântico enlace com as alegrias da beleza natural.
Na verdade a Casa do Lousado explica-se (muito) melhor pelas memórias da Preston Robinson House, do Breuer, que a dupla Correia Ragazzi procura reinterpretar através, exactamente, do uso do desenho enquanto instrumento de domínio da cultura, da história e da teoria arquitectónicas.
Marcel Breuer, Preton Robinson House, 1947, via Smithsonian Archives
Evidentemente que [o desenho da Casa d]o Lousado usa-se do volume superior cego para enfatizar o vazio inferior (a Sala), confirmado aliás pelo recurso aos envidraçados que, abertos, deixam as esquinas livres de qualquer elemento estrutural.
Em certa medida esse volume suspenso é semelhante ao truque cenográfico da consola da Casa do Gerês, embora o domínio do desenho seja, no Lousado, menos apurado, recorrendo a soluções pouco mais que óbvias [veja-se a tangencia da laje do corpo superior no terreno, da parte de trás da casa; ou a insensatez de encerrar os quartos para um reduzido pátio de onde apenas se vê o céu] que irão, alias, condicionar negativamente o próprio uso que os habitantes farão dela.
Há obviamente um paradoxo entre o discurso articulado pela palavra e o próprio discurso do desenho presente nas suas obras. Como há também uma clara vontade em suprimir toda a cultura que o desenho acumula, em detrimento de uma espécie de moral, que passa pela aceitação do belo, e pela rejeição de tudo o resto.
Há , aqui, uma questão ideológica; diria até religiosa: a noção que a natureza (como se a paisagem devesse alguma coisa ao natural) é bela em si. E, por oposição, a ocupação dessa paisagem é uma espécie de pecado mortal.
Ora, o problema aqui é que tudo o resto é, de facto, a (nossa) realidade: essa paisagem feia que Mário André tanto lamenta existir. E nesse sentido Correia/Ragazzi posicionam-se, em tese, como impotentes para lidar com a realidade; pressupondo-se que a sua arquitectura só poderá existir numa espécie de Paraíso Perdido – condição, aliás, próxima das imagens que nos chegam do Gerês; nem mais nem menos o sítio da sua obra mais acarinhada
Até lá, serão, apenas, belas formulações fotogénicas.
Direito de Resposta, seguido de Brevíssimo Ensaio sobre a Arquitectura da Moral
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9 comentários:
precisões:
não há arquitectura sem desenho (esta é discutível mas é a minha opinião)
o que é redutor, o que eu quis dizer com o termo "redutor", é que não me parece legitimo "invocar" o (santo nome do) desenho (em vão) "contra" as outras coisas todas de que a arquitectura também é feita
a fundação Iberê Camargo não "opera" contra (que ideia...) nem "despreza" a paisagem
"transformar" a paisagem como diz o Siza é "fazer amor" (digo eu) com a paisagem
tu achas, e estás no teu direito, que a casa do Gerês é "numa peça exemplar de arquitectura"
não vejo (descrito no teu "post") em como é que isso (a tua opinião) "transforma" a minha "altercação" em acto "desprevenido" (!?) ou "precipitado"
uma coisa é certa, a guarda (não guarda) da varanda é mesmo uma m****
gostei do final da posta
Não estamos, portanto, em desacordo em (quase) nada, pois não?
(já) não sei bem...
na "teoria" diria que não mas na "prática" diria que a tua defesa da "autonomia" do desenho parece oferecer suporte e "legitimidade" a alguns fetiches (mind da gap) mais recentes...
acho que é aí, no maior (tu) ou menor (eu) valor que atribuímos a certas "práticas" que estamos em desacordo
Mas não será esse, e isto é uma pergunta, o maior dos pecados da denominada "escola do Porto”. Um dos seus maiores falhanços? A incapacidade de promover uma relação critica de intervenção no território, na sociedade, no país. Ao internacionalizar-se o "estilo" esqueceu-se a realidade. Paradoxalmente parece-me que muitas vezes este conjunto de arquitectos se afirmou negando ou pelo menos ignorando o (suposto mas esquecido) papel social do arquitecto. Em nome de uma aparente impossibilidade de mudança, de transformação do e/ou no território. É nisso que a análise da casa do Lousado me parece certeira e mordaz. Nessa aparente impossibilidade das nossas cidades. E dos subúrbios. Principalmente de lidar e diria mesmo integrar os subúrbios. Onde vive uma parte considerável da população. No facto de uma certa arquitectura made in escola do Porto só ser capaz de emergir no Paraíso. E que foi acentuada por uma legislação urbanística idiota e irracional que fragmentou e estilhaçou o país, especialmente as zonas limítrofes aos grandes aglomerados.
Resposta ás Respostas á Resposta: na verdade me confesso (começo por S.T. de Aquino): não acredito muito nesse sublinhado do papel social dos arquitectos. Os arquitectos terão o seu papel social como o têm os padeiros: todos os padeiros - independentemente de fazerem carcaças (daquelas que ficam logo secas) ou brioches com sementes de sésamo (daqueles mesmo bons, que se vendem. por exemplo, na padaria do Chiado) - têm um papel social semelhante, e igualmente importante. Não é certo dizer que, por uma qualquer preocupação com determinada realidade, o arquitecto se torne num relevante activo social; enquanto um outro, que passe os seus dias a pensar na proporção ou no sentido de um determinado objecto (sim: uso o termo objecto com intencionalidade), seja socialmente desprezível.
Acredito mesmo que esse tão almejado papel social do arquitecto passe mais (sobretudo) pela necessidade de procurar resposta ás suas próprias dúvidas do que propriamente em ser solidário e generoso. Quer dizer: a melhor forma de um arquitecto (já agora, de um cidadão)ser generoso e solidário é perseguir os seus valores (éticos, estéticos, o que for...); e, nesse sentido, conclui-se que, se a coisa (neste caso: a arquitectura) for pensada nesse quadro de valores tudo estará bem.
(Entretanto, se repararam, tenho vindo também a tentar responder ao AM: é que fetiches (e todos os temos, espero) farão parte dessa forma de estar, que não necessita de ser escondida. Pois não?
Fazer amor (com a paisagem) ou foder (a paisagem) é (quase quase) a mesma coisa: o uso do termo depende normalmente da fase onde nos encontremos a determinado momento.
Quando à guarda: será assim tão importante; ou é [apenas:)] um (contra) fetiche teu?
só que nesse "quase" (o grau zero do nada para Roland Barthes) quanta diferença...
"fazer amor" com a paisagem é muito (muito) diferente de "foder" (de "violar", que também são coisas diferentes) a paisagem
a arquitectura é um prazer tântrico e a ejaculação precoce (na arquitectura) tem tratamento (menos em portugal onde vinga com basto vigor...)
quanto há "guarda"... os "pormenores" - já lá dizia o outro - fazem toda a diferença
e muitas vezes (todas!?) são a melhor maneira de "averiguar" da "consistência" de um "discurso" ou de um trabalho em concreto
os pormenores ("falhados") são também a melhor maneira de criticar os limites da "estética" neo-Mies dos descendentes do Souto
precisões :)
O arquitecto deveria possuir uma formação superior a todos os niveis !
Concordo com o S.T.A e com o AM a arquitectura deve ser um acto de amor !:)
se o arquitecto conseguir ser tântrico melhor...
Vocês saíram-me cá uma cambada de românticos.
Noto no entanto, com agrado, que a grande embirração de AM com a guarda da varanda da casa do Gerês é, sobretudo, uma embirração com o desenho da dita. Afinal...
claro, as minhas embirrações são sempre com o "desenho" (e - quase nunca... - com os "desenhadores"...)
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