Bem sei que isso pode ser sinónimo de romantismo decadente. Uma coisa é certa: é sinal de alguma idade. É que sou do tempo em que se por acaso apanhássemos o metro na estação [por exemplo] do Rossio, só nos podíamos apear lá para os lados da Rotunda, porque todas as outras estações eram mais pequenas do que o próprio comboio, o que fazia com que a última carruagem [por sinal aquela onde viajávamos sempre] ficava dentro do túnel. Bem sei que isto foi há já muito tempo. Na verdade era criança. Pequena.
Deve ser disso: das memórias de criança pequena serem poucas, mas graciosamente resistentes. O que é certo é que, por vezes, sobretudo nas estações mais vazias, ainda associo o metro àquelas galerias em arco, revestidas de pastilha verde parda, cinzenta de fuligem, com um vago cheiro a urina, que se misturava, no ar, com o fumo dos cigarros que toda a gente acendia enquanto esperava pelo comboio. Havia nelas um hálito acre, quase desagradável, que depois era compensado pelo aroma do café torrado, que se espalhava pelas ruas da cidade; isto quando ainda haviam torrefações de café um pouco por toda a Lisboa.
Já há poucas estações assim. Velhas. Sujas. A cheirar a urina e tabaco. Com gente estranha e senhoras a a carteira junto ao peito, agarradas pelas duas mãos. Pelo menos em Lisboa. Há-as, claro, em todas as outras cidades; embora devidamente vazias do fumo do tabaco. Do resto, tudo nelas se vai mantendo com alguma invariabilidade: a urina, a fuligem que tudo acinzenta, os cartazes rasgados. Uma ou outra luzes fundidas. Tubos a passar em todo o lado. Algum medo de olhar para os outros também. Podemos encontrá-las, a estas estações que têm escapado ao ímpeto renovador dos arquitectos e dos políticos contemporâneos, nas linhas que mais longe estão dos centros das cidades; como aquelas paragens de RER que servem sítios chamados de Gennevililiers, de Marne-la-Vallée ou de Bourg-la-Reine, já longe do alegre e aparentemente civilizado buliço de Paris. Também as há em Londres, e em Moscovo; até porque são afinal poucas as estações do metro de Moscovo que se parecem com palácios.
Na verdade a única cidade que as soube manter, a quase todas elas, decadentes, confusas e despreocupadamente funcionais é Nova Yorque. São fascinantes as entranhas das estações de Nova Yorque. Bem ao lado dos luxos da Grand Central há uma que cruza três ou quatro linhas, onde temos que baixar a cabeça para não bater nuns tubos ferrugentos, que pingam qualquer coisa parecido com água. Os próprios comboios dispensas por segundos a luz, cuja intermitência cria curtos mas inspirados lapsos de tempo durante as viagens. E ouvem-se ruídos pouco apropriados a quem já esqueceu a revolução industrial. Colombus Circle por exemplo: se lá em cima já nada se parece com as imagens nocturnas de Taxi Driver, aposto que a estação continua a mesma dos tempos em que Scorcese era bom realizador.
Não é que não aprecie essa tendência de tornar as estações numa espécie de lugar de lazer. Quer dizer: gosto de [tentar] acompanhar as frases escritas a caligrafia fina nos azulejos da estação do Parque; até porque a espera, que no passado serua acompanhada por um cigarro que se deitava, aceso, para a linha mesmo no momento em que a carruagem da frente ia a passar, se tem vindo por este dias a tornar mais monótona. Desde que é proibido fumar em lugares públicos. Mas é que, enfim, as estações cada vez mais parecem querer ser lugares, em vez de quererem parecerem aquilo para que foram feitas. As estações não são lugares. São máquinas. E, admito, pode ser que seja um romantismo tardio: mas gosto que as coisas pareçam aquilo que são. Sobretudo se forem máquinas.
E por isso esta crescente tendência para tornar lúdicas estruturas que por princípio não o são, sobretudo as tais estações - de metro, e de comboio - se tornam coisas muito pouco naturais. É certo o argumento: as coisas ficam muito mais agradáveis de usar. Mais verdes, mais sustentáveis até. Floridas e higiénicas, como aqueles anúncios dos pensos da Evax.
Não tenho nada contra as flores e as mulheres felizes, entenda-se. Apenas desconfio que aquela altura do mês está nos antípodas dos sorrisos das raparigas giras, contentes, e aos saltos. O mesmo se passa nas cidades: não é preciso andar sempre a sorrir, contente e aos saltos.
Vem isto a propósito de uma curiosa imagem [cuja origem infelizmente se perdeu, pelas memórias deste laptop], com um sujeito mesmo muito parecido com Mayakovsky, num lugar que aparenta ser a High Line. A imagem é curiosa primeiramente pelo facto de ter sido fotografado em Nova Yorque, não fossemos nós entretanto ter descoberto, não sem alguma surpresa, que o poeta terá sido um dos poucos revolucionários russos que se terá dado ao luxo de passear nas mais finas metrópoles ocidentais [e até de ter tido um filho americano de uma emigrée branca, mas isso são já outras histórias]; tendo inclusivamente escrito uma obra chamada exactamente de A Minha Descoberta da América [Moe otkrytie Ameriki, no original], datado de 1925 [há quem diga '26].
Mas o que esta imagem tem de maravilhoso - para mim, entenda-se - é poder olhar para a High Line como nunca a tinha visto, e recordar aqueles poucos momentos em que por ela passei antes de se ter transformado num popular lugar de diversões urbanas.
Não é que não ache poder vir a gostar da High Line como ela hoje é. Com certeza que irei. Gostar. Mas é que me parece que um dia destes ainda transformam as cidades todas em paraísos. O que, entenda-se, seria um aborrecimento. Mais até do que ficar preso no túnel, sem poder sair da última carruagem do metro.