Quando as Catedrais eram Brancas, notas breves sobre arquitectura e outras banalidades, por Pedro Machado Costa

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Esta Arquitectura É!, Esta Arquitectura Não ! [mais conhecido como Senhor Ministro!], Manifesto Modernista, João Correia Rebelo, 1956, aqui em re-edição facsímile IAC 2002

De certa forma é irónico: Ponta Delgada terá sido a única cidade portuguesa que se viu envolvida no também ele único manifesto de arquitectura moderna que há registo em Portugal. E no entanto Ponta Delgada é, provavelmente, a cidade menos moderna que se conhece.

A primeira explicação credível que terei ouvido para essa ausência de modernidade de Ponta Delgada veio da boca de um ilustre açoreano [palavra que se escreve com i, em vez de e; sem nunca lhe ter percebido a razão]: António Machado Pires; homem versado nos Maus Tempos dos Canais, para além do mais fundador da Universidade dos Açores.
Dizia Machado Pires que, por falta de contacto com o resto do mundo, o arquipélago conduziu durante séculos os tempos medievais que o descobriram; passando por isso ao largo dessa modernidade que só iria chegar num tardio séc. XIX, pela mão de uma pequena - mas ainda assim ambiciosa - elite que, entre outras coisas, se tinha decidido a construir a paisagem natural pela qual São Miguel é hoje reconhecida.

Não é que a modernidade não tenha existido nos Açores. Mesmo que tardia, existiu. E em força. Só que essa força foi toda ela canalizada para a reinvenção da mecânica paisagista da ilha, num misto de idealismo romântico e de modernidade calculista; pondo de parte – por evidente constrangimento ou por simples inutilidade – os tecidos urbanos.

Anos depois, num adiantado séc. XX em que metade da Europa se via a braços com esses frigoríficos brancos que se propunham higienizar o seu quotidiano, Ponta Delgada optava – sem qualquer hipótese de escolha, entenda-se – por seguir à letra os paradigmas de um Estado Novo muito pouco interessado em actos revolucionários; renovando-se à moda de um Português Suave de tom regionalista [isto é: com basalto a recobrir os betões que já ninguém dispensava].
Ainda assim, nada de muito diferente se passava por aí, sobretudo se comparássemos Ponta Delgada a qualquer cidade média portuguesa: novas praças abertas, monumentos limpos de incongruências históricas, arcadas e beirados. É aqui que entra em cena João Correia Rebelo, herói moderno; descontextualizado – como aliás o são todos os heróis modernos, com seu grito de guerra: Esta Arquitectura Não É! – apontando veementemente para o Teatro Micaelense, um belo exemplar de cine-teatros de beirado pastiche; daqueles que cresciam como cogumelos um pouco por todas as cidades médias -, e Esta Arquitectura É! – mostrando que a arquitectura erudita regional é uma outra coisa.

Correia Rebelo insurge-se, por escrito e desenhado, contra aquilo que apelida ser um embotamento total do senso poético das formas, renegando o desprezo absoluto pelas novas coordenadas em que se situa a vida do homem contemporâneo manifestadas por essa nova arquitectura micaelense, razão pela qual Rebelo afirma nada haverem – os autores dessa arquitectura, entenda-se – entendido da mensagem da tradição.
Depois, elegantemente, Correia Rebelo, chama, a essa renovação urbana e arquitectónica de Ponta Delgada: medíocre, indigente, cúpida e, claro está, falsamente regionalista. Se é verdade que a história viria a dar razão a Correia Rebelo – autor do mais modernos dos exemplares da arquitectura acoreana: a Pousada da Serreta, na Terceira [1968], e de um punhado de outras obras do mesmo tom – tal facto não o terá ainda assim isentado de cumprir, até ao fim dos seus dias, exílio por terras do Canadá, onde viria a falecer, já em 2006.

Libertada da incómoda presença desse moderno panfletário, Ponta Delgada lá pôde seguir o seu tão almejado zeitgeist continental; se bem que por pouco tempo. Porque à medida que Portugal [continental] se desamarrava das contingências dos largos anos de uma ditadura arquitectonicamente desinteressante; os Açores – e com eles, Ponta Delgada – paravam. E paravam sobretudo por falta desse dinheiro que terá permitido pôr em prática esse crescimento selvático das cidades, pequenas, médias ou grandes em Portugal Continental.
Dir-se-ia, não sem razão: foi essa paragem que salvou Ponta Delgada.

Esta Arquitectura Não é! Esta Arquitectura É!, ou o magistral malogro de Correia Rebelo [excerto], nas bancas com a última A21.

ps. alegadas razões editoriais da A21 levaram a que o texto original fosse publicado sem 15 das imagens que o ilustravam. Às que sobraram, faltam-lhes as respectivas legendas. Também o título foi reduzido.

2 comentários:

Anónimo disse...

Não existe a terminação –eano na formação de gentílicos.

http://linguamodadoisec.blogspot.com/2007/03/aoriano-mas-aores-escreve-se-com-e_28.html

Pedro Machado Costa disse...

Caro anónimo: obrigado pela atençáo. Quero no entanto referir que aqui, ao contrário do que é normal, a gramática actua contra a própria poesia. Porque os AçorIanos não merecem ser tratados dessa forma; sob o risco de se submeterem a regras que lhes anulam a capacidade insular.

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