Quando as Catedrais eram Brancas, notas breves sobre arquitectura e outras banalidades, por Pedro Machado Costa

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Está bem...

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... eu calo-me.

Zaha? What Else?

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- Zaha? Who did this shit?
- Ha did, ah did.


[Very important note: publicar a melhor private joke pode até ser o maior dos atributos d'As Catedrais.
Mas é ao seu verdadeiro autor que se deve tirar o chapéu: Vicente. What Else?]

Adenda á entrada anterior

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Não é que me tenha (ainda) arrependido daquilo que escrevi. Mas, sabendo que o homem foi a Veneza, sempre gostava de saber qual foi a conversa ao almoço, entre ele e o Presidente da Câmara da dita cidade.




















Prince Charles: Speaking up for Modern Architecture, in Architecture Perspectives, 1994 vs. Massimo Cacciari, On the Philosophy of Modern Architecture, 1996.

Vendo bem, não é tanto uma discussão sobre arquitectura moderna. Mas, simplesmente, uma questão de perspectiva: acreditar, ou não, em coisa alguma.

Só hoje

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Bem sei que isto não é fácil de dizer. Nem de explicar. Bem sei que isto pode cair mal. Vai cair mal. Bem sei. Bem sei que isto pode ser confundido com historicismo. Ou reaccionarismo, que é ainda pior. Bem sei que a personagem não é propriamente a mais simpática. A mais inteligente. A mais bonita. Bem sei que as ideia por ele defendidas parecem mais ter saído de um contos de fadas de segunda categoria do que propriamente de alguém que pensa sobre o futuro, o passado também, das nossas cidades. Bem sei que tudo aquilo em que acredito se lhe opõe, em tese. Bem sei que Poundbury parece mais um daqueles cenários feitos de cartão do que propriamente uma coisa onde possamos viver. Bem sei que me posso vir a arrepender de dizer isto. Mas digo à mesma: hoje, só mesmo hoje, se tivesse que escolher um partido, escolhia o dele.















Poundbury, Leon Krier, 80's [via The Guardian]















Terminal de funicular, Innsbruck, Zaha Hadid, 2007 [via The Guardian]

Se ainda assim, depois de compararem as duas imagens, preferirem a que está em baixo, pensem nesta: o homem não deve ser assim tão mau. Afinal foi pela mão (mão não: mãe) dele que Siza recebeu a tal da medalha de ouro. E isso deve valer alguma coisa. Não?

O cinema, pairando

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Ao contrário do que alguns parecem supor, embora Lisboa esteja fortemente presente neste filme [Dans la Ville Blanche], e que Lisboa inesperada!, não se trata "de um filme sobre uma cidade" no sentido em que esta possa surgir como objecto de um filme, mas, sim, de um filme que se move "sobre uma cidade" como de alguém se pode dizer que "anda sobre as águas"
Prado Coelho [no original: JL 58, 5/83], citado por José Manuel Fernandes no texto Lisboa Branca?, publicado em 1987 pela Cinemateca, num catálogo dedicado a Alain Tanner.

O cinema, perdido

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Dans la Ville Blanche: revi-o. E partilho as incertezas de Mário.
O filme é hoje diferente daquele a que assisti há alguns anos. É mais crú. É mais ingénuo. É mais linear. É mais romântico. Daquele romantismo pouco dado a conjecturas; que é o menos entusiasta de todos os romantismos.
Olhei-o, ao filme, de uma forma menos cinematográfica, é certo. Sobretudo à procura daquilo que Tanner queria mostrar.

Segui, curioso, os travellings em que Paul (a personagem interpretada por B. Ganz) se passeia pela cidade. Não tanto pelos travellings, entenda-se. É que Lisboa, n'A Cidade Branca, torna-se num espaço ficcional: uma espécie de manta de retalhos que aproveita dispersos mas convictos pedaços da cidade.
Paul começa por atravessar um pátio em Alfama. Logo depois vira à esquerda, numa ruela qualquer e zás: está na 24 de Julho, do outro lado da cidade, a andar, descontraidamente, entre a estrada e a linha do comboio (como se alguém, alguma vez, passeasse na 24 de Julho, entre a estrada e a linha do comboio). Logo a seguir passa pelo Camões, para rapidamente aparecer (outra vez) junto ao rio, lá para os lados de St.ª Apolónia.
Mais à frente entra no Salão de Jogos Monumental para jogar bilhar. Quando sai é perseguido junto à Ribeira por uns assaltantes que, de imediato, o roubam , lá para os lados da Graça.
















Jardim Cinema: Salão de Jogos Monumental, Raul Martins, 1930

[A cena do Monumental foi útil. Já o tinha esquecido, ao Salão de Jogos: ficava na Álvares Cabral, entre o Rato e a Estrela. Ia lá de vez em quando, p'ra esticar a hora do almoço, quando a Contemporânea ainda estava na Rua do Sol ao Rato. Era um espaço magnifico que um dia tinha feito parte do Cinema Jardim - que por essas alturas só já era um estúdio de televisão, e onde nunca entrei. Da porta do Salão descia-se para o piso principal, ocupado por mesas de bilhar desbotadas, iluminadas por candeeiros baixos (ia jurar que os candeeiros eram doirados - assim mesmo: com i e tudo - mas infelizmente a fotografia apagou-me o equivoco doirado). As ventoinhas estavam sempre a rodar, talvez por causa do fumo do tabaco. Por de cima disso tudo existiam duas galerias que ladeavam o salão, e ligavam-se á mezzanine por umas escadas que lhe serviam de suporte. Era isto: estas escadas, que tornavam o Monumental num sítio tão especial.]

Como qualquer documento sobre os sítios que nos são quotidianos, feito por alguém que não participa desse quotidiano, Tanner filma uma cidade que não corresponde em nada á Lisboa que sabemos.
Não é que ache que Tanner devia saber o que é (a minha) Lisboa, até porque o filme tem vinte e seis anos. Mas é que há, em Tanner, a busca por um lugar que já não existe. Há muito mais tempo do que os vinte seis anos: uma cidade no limiar do exótico, distante de qualquer cosmopolismo, longe até de qualquer imagem de cidade ocidental que nos lembremos quando nos queremos lembrar daquilo que é feito uma cidade ocidental.

[O fenómeno é, aliás, recorrente nas imagens de Lisboa feitas por estrangeiros: basta recordar os postais turísticos que enchem o Lisbon Story, pelo menos naquelas partes em que Wenders se esqueceu que foi o realizador d'As Asas do Desejo: uma Lisboa cheia de criancinhas de calções a subir e a descer escadinhas, terraços sobre o Tejo, salões enormes em casas enormes com as paredes forradas a azulejos, alguns partidos. Noites de pouca luz. E nem um carro.]

O quarto da pensão onde Paul se instala tem uma torneira que não deita água. Paul anda de eléctrico amarelo. Há música pelas ruas. Vendedoras barulhentas e gordas. E muita roupa branca. Pendurada nos estendais.
Paul/Tanner foge constantemente da cidade onde as pessoas vivem, optando por participar naquela espécie de folhetim barato onde os turistas de meia idade se imaginam perdidos, entre belas raparigas de cabelos negros que, timidamente, escondem a cara a quem passa e (os tais) perigosos assaltantes de língua e naifa afiadas, suspirando de alívio mal vêem a esplanada do Museu do Fado, com empregados rigorosamente aprumados, que lhe oferecem um Porto novo ao preço de um vintage.
Esses turistas que depois regressam ao conforto do mundo moderno, com torneiras onde corre a água, com carros, e sem mulheres gordas e barulhentas - que, no filme, é a cidade e a casa para onde Paul envia os rolos de Super 8 - para contar o que viram.

Há um lado qualquer de inverosimilhança que percorre todo o filme. Uma espécie de história atabalhoada, que tem pouco para contar, e que parece apenas servir para mostrar essa cidade que não existe.
















Cinema Paris, Vítor Piloto, 1931 (imagem via: Paula Bobone Eventos...já agora: um must)

Mas, confirmo: Lisboa é branca. Pelo menos nas partes filmadas a Super 8.
O mesmíssimo Super 8 que Wenders usará uma década depois, apontado aos mesmos eléctricos, às mesmas roupas brancas estendidas, e a um (outro) edifício que (já) não existe: o Cinema Paris; entre a Estrela e Campo de Ourique.

35 d'Abril

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Henry Bureau / Sygma, da série Carnation Revolution, 1974 (via Corbis)

O Mandarim

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(N)O fundo da cidade era assim.

Uma espécie de ordem natural das coisas misturada, claro, com a necessidade de arrumar trezentas e cinquenta mil pessoas numa área de dezasseis quilómetros quadrados, contanto com as duas ilhas que se ligavam por finas pontes: Taipa e Coloane.

Diz-se: agora, agora são mais de quinhentas mil, as gentes. Mesmo que as ilhas estejam já irremediavelmente ligadas, a simples ideia de arrumar trinta e poucas pessoas por cada metro de chão torna a cidade, cada vez mais, numa improbabilidade estatística.















E no entanto, por vezes, nessa necessidade áspera, veloz, por d'entre a massa de construções anónimas que iam aparecendo em lugares onde dantes - há pouco tempo - existia apenas água, era ainda possível insistir em vontades.

Como tudo o resto, aqui, aceitar as regras de um jogo que se sabia perdido à partida era apenas (mais) um pormenor. Mas era esse vício de ir a jogo que tornava uma simples caminhada por entre ruas e ruelas numa experiência memorável.

Entenda-se: fazer arquitectura aqui, assim, ultrapassa em muito a possibilidade de explicá-la. E no entanto ela lá está, expectante de nada. Servindo, como poucas, o futuro de uma cidade.

Plano Nacional de Leitura

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Melhor mesmo só andando por lá.

O Mandarim

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Arquivo Histórico, Macau, Manuel Vicente

Por fora, o Arquivo Histórico é uma espécie de guardador do segredo. É mais um daqueles edifícios de tez colonial, em que o alpendre fica por detrás de arcadas que desenham o ritmo das fachadas que dão para um sítio chamado de Tap Seac.
As portas e as janelas estão invariavelmente fechadas por portadas de madeira, pintadas àquela tinta grossa, brilhante, castanha.

Indecifrável por quem passa na Avenida um criterioso amontoado de quadrados de vidro desenha-lhe os espaços interiores. Todos.
Vidro aramado, martelado, meio transparente, que cobre (in)discriminadamente as cores ocres e vermelhas das paredes, de tectos, de balcões, dos elevadores que passam para baixo e para cima, muito devagar.

Os nossos passos ecoam pelas salas. Ao fundo, vindo não se sabe d'onde, ecos de outras pessoas ecoam noutras salas, sem que se veja realmente ninguém (nisto, como em tudo, há memórias que ressurgem, como aquelas noites a percorrer Veneza, acompanhados pelo ritmo dos passos de muitos alguéns, noutra Fondamenta qualquer, sem que realmente vislumbrássemos figura alguma).

De vez em quando há imagens nas paredes. Mas é difícil recordá-las.
As paredes não deixam espaço para outras memórias.

Adenda à ùltima entrada

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Tate Modern, Herzog & de Meuron, 2000 (foto: Davids-world)

(...) and in the turbine hall at that middle-class disco, Tate Modern - a vast totalitarian space that Albert Speer would have admired, so authoritarian that it overwhelms any work of art inside it.

ibidem

A handful of dust

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So, there is one place where modernism triumphs. As in the cases of the pyramids and the Taj Mahal, the Siegfried line and the Atlantic wall, death always calls on the very best architects.

JG Ballard, sobre a arquitectura, o modernismo e a morte, The Guardian 20.03.2006

James Graham B.

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I think you know, it's a return to the self in a way, and an awareness, a rather terrifying awareness that... that self is probably without meaning. That's the fearful prospect a little further down the road, that people will accept that their lives are meaningless and that everything else is a fiction designed to assuage, you know, the sort of desperate anxiety of a meaningless world.

That's a frightening terminus to disembark onto.

Adenda à entrada anterior

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Cigars and coffee. That's a combination.

Alice no país das maravilhas

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Por falar nesse tema tão ao agrado dos arquitectos que é a cidade vista pelo cinema (seja o PlayTime, seja o Alice, seja o Sexo e a Cidade), recordo Dans La Ville Blanche (1983), de Alain Tanner.

Não é que tenha nada a acrescentar à já extensa teorética arquitectónica em volta dessa pequena maravilha cinematográfica.
Mas não resisto em recordar o sorriso fugaz da rapariga que se senta em frente à personagem interpretada por Bruno Ganz, no comboio que nos leva ao fim do filme.
Essa mesma rapariga que uns anos mais tarde irá produzir o delirante Coffee and Cigarettes, de Jim Jarmush e que, para além do mais, é filha de um homem cuja obra, mais cedo ou mais tarde, irá ser reconhecida por este pequeno meio a que vulgarmente chamamos de arquitectura portuguesa contemporânea.

Assim espero. Pelo menos.

Aalto aí!

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Cancer?

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It's absurde and risible. I think it would have made him die of...

Subliminar

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... esta publicidade, não?

Ceci...

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... n'est pas une pipe!

Mais...

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... ça c'est degolasse.

Alice nas Cidades

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A propósito do ciclo A Cidade no Cinema, comentando Belarmino , Ana Vaz Milheiro terá ensaiado uma comparação (temporal?) entre a leitura da(s) cidades(s) que o cinema português faz ao longo da sua história - aqui, adivinho, AVM terá incluído Os Verdes Anos, O Pátio das Cantigas e o Aniki Bóbó - e a(s) própria(s) cidade(s), através do ponto de vista das suas obras de arquitectura.











A certo momento do discurso Ana Vaz Milheiro refere um paralelismo entre o modo de olhar a cidade, no Alice (Marco Martins), e as Residências Universitárias das Laranjeiras.

Como (pecado meu) não vi Alice, não sei bem o que é que isto poderá quer dizer. Mas, comparação por comparação, fiquei descansado: AVM poderia muito bem ter-se lembrado de referir Os Mutantes (T. Vilaverde) ou, pior ainda, A Juventude em Marcha (P. Costa).

Não é que um e outro filmes sejam maus. Pelo contrário.
O problema é que, se assim fosse, ficava com a ideia que AVM era ainda capaz de dar bom uso à ironia.

Look: new shoes!

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Charles Correia, David Adjaye, Janeiro 2006, via BBC

Repare-se: não tenho nada, mesmo nada, contra a existência de um pensamento Politicamente Correcto.
Parecia-me no entanto bastante mais correcto saber que as apostas que vamos fazendo para as nossas cidades (Museu dos Coches, Africa.cont, Fundação Champalimaud) passassem por processos mais devedores daquela tradição democrática onde, norma geral, as escolhas são feitas com base na reflexão, e não apenas (e só) na intuição.

Concordemos: ultimamente a intuição não tem dado assim tão bons resultados, pois não?

[ps. Clarificação (Politicamente Correcta) àqueles (poucos) que não perceberam (ou perceberam mal) a fina ironia do headline: a piada vem daqui.]

Literal

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África.cont, David Adjaye, via Alexandre Pomar

Do termo Politicamente Correcto fica-nos cada vez mais a ideia de que a sua aplicação se tem revelado confrangedoramente primária.

Literal por literal, resta-nos o gozo de, por uma vez, termos sido os primeiros a ter a ideia.

[ps. E no entanto não fomos assim tão Politicamente Correctos como possa parecer à primeira vista: é que, ao contrário dos americanos, (mais uma vez) alguém por aqui se terá esquecido daquele pequeno pormenor (referido aliás pelo Complexidades e Contradições) que costumamos apelidar de concurso público. (imagens e resultados do concurso público para o National Museum of African American History and Culture aqui). Das duas uma: ou inventam rapidamente um centenário qualquer para explicar a urgência da adjudicação, ou então bem podermos aguardar por mais um abaixo assinado, daqueles que a Joana Vasconcelos e o Siza Vieira tão bem costumam frequentar.]

Historicismos

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Estava eu a dizer que Macau se torna irreconhecível para quem não a visita durante uma década.





















E no entanto era capaz de jurar (a pés juntos) que cheguei a morar num prédio com uns dez andares, num bairro sossegado, no sítio onde agora está esta coisa vagamente parecida com coisa alguma.

Só me resta concluir que já não vou a Macau há pelo menos dez anos.
O que, para além de ser uma chatice, faz do texto anterior um historicismo.

O Mandarim

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Em segundo lugar, porque apesar de tudo sofria ainda desse misto de ingenuidade e de arrogância que me fazia procurar não entender aquilo que perante nós, desmesuradamente, se exibia.














Templo, Taipa.


Em terceiro e último lugar, porque o tempo não tinha de facto ajudado a considerá-la, a ela, enquanto tal.
Esse tempo lânguido, apegadiço, que nos fazia gotejar à medida que caminhávamos sob um céu sempre amarelado, por d’entre ruas e becos com nomes já difíceis de encontrar em qualquer outra cidade: Pátio da Claridade (Kuóng Fôk Vâi), o da Eterna Felicidade (Vêng Fôk Vâi) ou o da Ilusão (Vân Kok Vâi), a Calçada da Surpresa (Ngõk C’hé Hóng), a Travessa do Sancho Pança (Lou T’ou Hong) ali bem perto do Pátio do Bem Estar (Mán Ón Tói), ou a Escada das Árvores (Sü Môk Hóng).
E também esse outro tempo, infinito, passado entre um atelier sem janelas e as outras noites, as que nos restavam, bem mais profícuas daquela facilidade que faz dela vício inebriante.





















Uma rua qualquer, em busca da lavandaria.

No começo aparentava ser uma cidade com as entranhas de fora.
Um pouco como o que se passava naquela espécie de prostíbulos self-service, onde mulheres desnudadas, numeradas e arrumadas por detrás de um espelho, aguardavam alguém que as reclamasse; toda a cidade parecia revelar o seu íntimo.
O que na verdade constituía uma formidável armadilha, a primeira na qual todos nós éramos ludibriados antes mesmo de percebermos que a água da chuva nos dava já pela altura dos joelhos, lá para os lados do Porto Interior, por alturas das monções do fim de Agosto.





















D'O Livro das Delícias e dos Amores, que podia perfeitamente ser o guia da cidade.

Os odores também confundiam os primeiros dias. Toda essa panóplia de perfumes, diversos de esquina para esquina, mas uniformemente nauseantes para os recém-chegados.
O cheiro da comida acabada de fazer, dos animais dormentes, do incenso queimado e da pólvora dos panchões e, sobretudo, o cheiro dos corpos; o suor das gentes que nos cruzavam numa azáfama repentina, esses corpos que achavam nas ruas aconchego suficiente para as terem como casa.














Por debaixo das arcadas do Porto Interior.

As gentes daqui, tal como viríamos a descobrir, seguiam os hábitos do resto do continente: a rua era, é ainda, o seu lugar privilegiado.
Ali trabalham, ali comem, riem e discutem, ali jogam, dormem e ali esperam, fazendo-nos duvidar desse nossa noção de privacidade; ao mesmo tempo que procurávamos entender por donde se teriam desvanecido todos os restantes 21 habitantes cujas estatísticas demográficas mais recentes asseguravam ocupar o mesmo metro quadrado de solo onde nos encontrávamos a cada momento.

Quem sabe, talvez essa multidão escapasse pelos múltiplos andares que desenham esse singular e maciço skyline; explicando porventura o regime de cama-quente no qual duas insondáveis famílias partilhavam o pequeno apartamento que me era vizinho.





















Prédio com fachada acrescentada.

Sendo o interior das casas coisa inexpugnável ao olhar alheio, os sinais particulares, ostensivos, viravam-se no entanto, também, para as ruas; concorrendo com a trepidação dos néons luminosos que todas as noites me invadiam o quarto.

Nos prédios qualquer abertura para o exterior, fosse janela ou porta, encontrava-se encerrada por meio de grades de forma e desenho heterodoxo.
Invariavelmente prostradas no lado de fora das fachadas, cada uma de diferente cor, trama e forma, acidentalmente dispersas por todos os prédios, somente fruto do arbítrio individual, permitiam a cada habitante exibir a suposta existência de algo invejável no interior de cada casa; como se fosse uma fortuna de segredo propositadamente mal guardado.
Era pelo menos o sonho de algum dia a alcançar.






















Areia Preta, Fábricas verticais
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Se a esta justaposição de grades de feitio e cor desproporcionadamente atraentes, somarmos uma outra feita de emaranhados de canos de água e de esgoto, de fios eléctricos, aparelhos de ar condicionado e cabos telefónicos – coisas que por aqui, habitualmente, ficavam-se pelo exterior das fachadas; como que uma caricata paródia do Beaubourg de Paris -, podemos ter uma (vaga) ideia da verdadeira expressão arquitectónica dos edifícios; aquela que por momentos esconde a confrangedora banalidade do seu desenho original.















Vista para norte, a partir da Fortaleza do Monte.

O problema, no entanto, começava precisamente aí: o de distinguir, entre esse amontoado de trivialidade ordinária, aquelas pequenas coisas que fariam o verdadeiro acontecer da cidade.

Por momentos, admitamos, no decurso dos primeiros meses julgámos até que a sua singularidade se devia exclusivamente ao artifício da luz; aquele brilho que nos autorizava a desprezar a diferença entre noite e dia, permitindo-nos encontrar a qualquer hora uma multidão de coisas a acontecer.
Mas depois, lentamente, desconfiávamos que essa facilidade de lhe tocar era tão ilusória quanto as horas de prazer compradas em qualquer hotel ou sala de jogo.
Se a cidade prometia condescendência a quem a olhasse ao longe, o seu íntimo revelar-se-ia bem mais cioso dos seus segredos.
A melhor demonstração desse paradoxo, a mais terrível também, era-nos dada a partir da vizinha Zhuhai: por detrás de um muro alto e inexpugnável a quem não tivesse passaporte, e durante a noite sobretudo, a sua gloria exibia-se mais provocante que nunca, leviana de cores e luzes, alguns sons também.
Para muitos, para aqueles que consumiam horas com o olhar cravado na distância do seu horizonte acidentado, essa facilidade permaneceria para todo o sempre o mistério mais difícil de alcançar; o que, mesmo assim, ajudava a não renunciar ao desejo de algum dia a possuir.

Para nós no entanto, mesmo que fazendo parte daqueles poucos capazes de atravessar a fronteira mantendo o ar imprevidente que é comum aos estrangeiros de pouca ou nenhuma obrigação, a euforia de lá chegar esbarrava, mais cedo ou mais tarde, no enleio dado pelo invulgar ecletismo que lhe desenhava um perfil tanto ou quanto amorfo.





















Fachada, Porto Interior

Não que isso significasse qualquer impossibilidade de distinguir por dentre essa amálgama construída uma certa ideia de organização, próxima até, se quisermos, daquela ideia de cidade que nos explicada nos manuais escolares.

As suas camadas eram, e ainda o são perfeitamente reconhecíveis: a cidade linear, quinhentista, ligando naturalmente todos aqueles lugares mais ou menos evidentes que despontaram entre as duas baías (a Baía da Praia Grande, ocidentalizada, virada para o mar barrento e para as suas duas ilhas; e a do Porto Interior, mais próxima do burburinho das gentes locais, também de águas turvas, que daí deixava entrever as colinas do sul da China quando apanhávamos o barco da noite para Cantão); depois, todo aquele reticulado de avenidas largas e (só) aparentemente paralelas entre si que, para fugir aos declives, faziam enganar o mais promissor sentido de orientação (pretexto, enfim, para mais uma vez nos extraviarmos pelas suas noites húmidas a velozes, imitando os Anjos de Wong Kar Way); e, por fim, todo aquele engenho que inventava aqui e acolá pedaços de terra onde até então nada (a não ser o mar barrento) existia, e que fazia dos seus limites coisas sempre discutível, ao mesmo tempo que permitia práticas urbanas de duvidosa mestria.

Só que, se essas camadas eram de algum modo singularmente perceptíveis, o seu todo tornava-se difícil de contar; o que porventura explica que as suas representações mais famosas sejam ainda as de Chinnery, feitas num séc. XIX estável e ainda cauteloso.

Tudo afinal se tinha transformado; e continuava a mudar constantemente.
Ouvir descrevê-la por alguém que tivesse partido há já uma década tornava-se por isso, sobretudo, numa distracção mordaz: nada já lhe era comparável; a cidade tinha-se capacitado desse poder de se contradizer ela própria, como que num exercício autófago.
Paradigma disso era o Farol da Guia. Outrora marco luminoso para as embarcações que se acercavam vindas do Japão e da Europa - as de baixo calado, entenda-se, porque os barcos maiores, impedidos de progredir nas águas rasas e lamacentas do seu porto iriam, a partir das guerras do ópio, transformar a baía de Hong-Kong no centro nevrálgico de todo o Delta, retirando-lhe a ela qualquer autoridade que não a anuída pelo jogo e pelo sexo -; ao farol restava-lha apenas iluminar, uma vez por ano, a corrida de carros que atravessa ruidosamente um bairro agora central da cidade.
E, tal como esse farol, vários edifícios pensados como primeira linha de costa viam-se agora ser erigidos a uma centena de metros da água, esventrados de qualquer possibilidade de congruência com o fim a que tinham sido destinados.















Coloane, Porto de Pesca, Chinnery

Esta volubilidade, espantosa para qualquer um habituado à permanência, era no entanto, apenas, uma amostra daquelas cidades instantâneas que se experimentavam do outro lado da fronteira: onde há apenas um punhado de anos existiam montes escarpados visitávamos agora uma extensa planície plantada de largas avenidas, expectante apenas de profícuos arranha-céus e dos seus milhares de habitantes.

Devo dizer que, tendo sabido previamente das lições de Las Vegas, esperava um pouco mais de astucia da minha parte.
Estaria, claro, a contar descortinar esse exercício requintado que me garantem ser, ainda hoje, o sua arquitectura; até porque (a explicação tem a sua lógica) não haverá lá outra expressão autónoma, outra criação poética que não ela própria; enquanto estrutura física, enquanto cidade. No entanto parecia-nos antes de tudo uma enorme amálgama; de tal forma que nos era particularmente custoso distinguir a sua própria origem, mesmo quando estávamos perante aquelas arcadas dos palacetes de frente, cuja fisionomia neoclássica sempre me pôs ao desconfio.

Somente em momentos singulares (os melhores e os piores, entenda-se) pudémos constatar da clara existência desse arbítrio arquitectónico que nos toca, a nós, em particular; se bem que tal facto não fosse sinónimo de pureza alguma: mesmo que se tratasse da mais simbólica presença ocidental do território (dizia-se ex-libris patrimonial), por detrás da composição típica das igrejas genovesas da segunda metade do séc. XVI, depressa apurávamos um imbricado de cenas e figuras chinesas, algumas japonesas também.




























Coloane: Cenário para um filme sobre a Baía Grande; em cima: ponto de vista da câmara de filmar; em baixo: maqueta.

Depois porque a sua própria matéria, aquilo do qual a melhor arquitectura era feita, revelava-se-nos inexpugnável à nossa curiosidade.
Mas o erro era apenas um: o da nossa incapacidade de interpretar.

Porque, mais uma vez por arrogância, não a queria ter em conta, a ela, como argumento possível de pôr em prática a arquitectura; feia, por vezes deformada, ostensivamente decorada por múltiplas apropriações, parecia-nos cosida com a mais banal linha do mundo, e também muito pouco preocupada com tudo aquilo que julgava acreditar.
No entanto, por breves momentos, enquanto as glórias por mim decoradas num cada vez mais longínquo Porto iam subindo todos os patamares, tornando-se as suas finas linhas pasto para certa mediocridade universitária exibir uma inteligência que nunca teve, essa discreta mas violenta aura que se revelava por dentre aquilo que julgava ser apenas banal fazia-me agora duvidar de tudo o que supus um dia saber inventar.

Por momentos tal facto sugeriu-nos um outro nome bem mais reconhecível àquele mandarim que Eça descreveu um dia:















No fundo da China existe um mandarim mais rico que todos os reis de que a fábula ou a história contam.
Dele nada conheces, nem o nome, nem o semblante, nem a seda de que se veste.
Para que tu herdes os seus cabedais infindáveis, basta que toques essa campainha (...) e tu verás a teus pés mais ouro do que pode sonhar a ambição de um avaro.
Tu, que me lês e és um homem mortal, tocarás tu a campainha
?
E então, de súbito, compreendemos esse facto maravilhoso: o da impossibilidade de explicarmos a arquitectura de Macau.

Primeiro, por ela ser impenetrável a qualquer olhar que não partilhasse da astúcia desse Mandarim.

Bem me queria parecer...

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O arquitecto Nuno Brandão Costa, Prémio Secil 2008, disse ontem ao Público que o trabalho único de Zumthor já merecia o Pritzker [...]. Seu colega geracional, o português considera a subtileza da obra do Suiço [...]
Excerto de Um Arquitecto asceta na galáxia das estrelas, pela jronalista Joana Amaral Cardoso, Público, 13-04-09
...que o Nuno Brandão Costa é muito mais velho do que aparenta. Ou então, se calhar, esses jornalistas são muito mais novos do que aquilo que deveriam ser.

Muito provavelmente a verdade andará algures pelo meio.

Sobre o Desenho, ainda

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Se tudo correr bem - ou mal - , um destes dias andaremos a palavrear sobre a obra cuja origem estará algures por aqui: nesta coisa que (mal) fotografei.
Dela falaremos bem - ou mal. Discutiremos da sua inutilidade, da sua fragilidade, ou da sua adequação. Defenderemos a sua generosidade ou o seu oportunismo. Ou a sua elegância.
Ver-se-à.

O importante agora é dizer: há muito tempo que não via alguém usar tão bem o lápis.

Sobre o Desenho, outra vez

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Enric Miralles, Como acotar un croissant


Poderia então concluir-se que há aqueles que, por bem desenhar, desenham (quase) sempre bem. Sem no entanto saber porquê, nem mesmo para quê.
Depois há as gentes para quem a teoria e a história - fulcrais, já se vê - são exteriores ao desenho. Esses normalmente desenham mal. Mas no final, claro, sabem sempre porquê.

Sexta-Feira Santa

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Na ópera, com Madalena

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Censurável, eu sei: desde novo que tinha um preconceito qualquer com da Ópera de Sidney. Achava-lhe a forma demasiado singular. Algo que faria mais sentido num porta-chaves do que num outro sítio qualquer: uma espécie de síntese anacrónica da cidade que a acolhia, esvaziada de sentido e de função.
Colocava-a, à Ópera, no mesmo pacote da Torre de Belém: uma espécie de impossibilidade, suspensa num tempo incompreensível, formalmente desligada de tudo. Oca por dentro, como aqueles bolos dos filmes, de onde saem raparigas em topless, só que sem raparigas nenhumas.

Com o passar dos anos fui, claro, olhando para o Utzon de uma outra maneira. Sem no entanto nunca saber o que é que se passava para lá da iconografia que todos estamos (des)cansados de conhecer.





















E é por isso que eu gosto (cada vez mais) de Madalena Lello: uma rapariga que sempre sai de dentro do (seu) bolo para nos maravilhar.

Desta vez são imagens da melhor arquitectura que a Ópera tem para oferecer, guardadas nas memórias do Sais-de-Prata. São duas as fotografias, da autoria de Wolfganf Sievers, que definitivamente me fazem querer ir a Sidney.

Olhar para baixo

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Pietilä (e Alvar Aalto), Edifício de Estudantes, Politécnico de Helsinkia, via Corbis

Estavam a tentar explicar-me que a base de pedra, um tanto ou pouco singular, do edifício do Pietilä, é uma solução corrente um pouco por toda Helsinkia.
Na verdade já tinha olhado para a imagem várias vezes, sem me ter dado conta das pedras.

A situação fez-me lembrar um painel publicitário a uma sapataria que vi há uns anos, onde figurava uma rapariga mais ou menos provocante, vestida apenas com uns sapatos vermelhos; e, por baixo, uma frase curta: look, new shoes!

O dia d'hoje

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Já sei. Qual é a diferença entre nós e os outros todos. Esses outros todos. Os que se põem para aí a pintar, ou a escrever, ou a dançar, ou a musicar, cenografar, ou a coreografar.
É que, a eles, ninguém lhes pede que comecem. Pelo contrário: nós não começamos nada sem que nos peçam.
No entanto, nem tanto no começar reside o maior problema. Entenda-se. E aí estamos em vantagem. Sobre esses outros todos. Os que se põem para aí a pintar, ou a escrever, ou a dançar, ou a musicar, cenografar, ou a coreografar: enquanto esses outros todos batem com a cabeça nas paredes mil vezes antes de perceberem que a coisa já está pronta, a nós basta-nos seguir o calendário.

Por vezes esquecemos o calendário. É certo.
E não há nada como um simples telefonema para nos lembrar que dia é o dia d'hoje.

Dias como o d'hoje, haverá muitos. Aqui ou noutro lado qualquer. Toda a gente sabe disso.

Quando as Catedrais eram invejosas (parte II)

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E depois quem pensa que é essa Rititi, para afirmar, assim sem mais nem menos, a sua favoritisse às palavras do Lourenço.

Assim sendo, só me resta afirmar: também gosto do Complexidades e Contradições; embora prefira definitivamente o Learning from Las Vegas.

Quando as Catedrais eram invejosas

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Primeiro foi o Francisco José Viegas, a propósito das pessoas em Portugal não lerem livros no metro (a culpa não é das pessoas nem dos livros, mas da linha de metro, cujo tamanho não dá tempo para tirarmos o dito cujo da mochila).
Depois veio a comparação entre a Zita Seabra e a Gisele Bündchen (comparação injusta, já se vê: Bündchen não mudou de ideias depois de ler Soljenitsin).
E com isto já lá vão dois números (seguidos?) da LER a citar o Complexidades.

Ora, As Catedrais exigem tratamento igual: se não for na capa da LER, que seja numa linha de rodapé da Arquitectura 21. Eu sei que não é (bem) a mesma coisa, mas também nunca me cruzei com a Bündchen no metro.

Arquitectura em Portugal

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a.s* atelier de santos

Mind the gap!

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Fernando Guerra, Algures em Londres, 2009

Direito de Resposta, seguido de Brevíssimo Ensaio sobre a Arquitectura da Moral

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Relativamente ás palavras de Mário André e de António Machado a propósito Do Desenho, julgo que não me fiz entender à primeira.
A ver: a inteligência do desenho [poderá] implica[r] a inteligência da intenção, a inteligência da ideia, e a do programa; se quiserem: também da adequação e da atenção ao lugar [embora tenha reservas quanto a isso].

Quer isto dizer: a inteligência do desenho seria, em tese, inversamente proporcional à “destruição” da [nossa] paisagem; pela simples razão que estávamos [estamos] a falar de arquitectura, e não tanto de coisas que ás vezes, de olhos fechados, com ela se aparentam; e que, por tal facto, não vale a pena serem motivo de confusão.

E no entanto, como que paradoxalmente, a arquitectura garante a si própria um tão grande grau de autonomia que, em limite, poderíamos discordar da discordância de Mário André: a arquitectura destrói a paisagem sim senhor. E ainda bem.
Porque a arquitectura é feita contra todos. Porque a arquitectura não precisa de explicar, nem de se explicar, pela paisagem.
Trata-se afinal de uma actividade que destrói uma determinada realidade; e a única polémica que podemos ter acerca disso será sobre a (melhor) forma de o fazer: de destruir a realidade ou, por outras palavras, essa tão bucólica paisagem tão que Mário André ainda ousa perseguir.

Se restar paisagem depois da arquitectura, essa paisagem será aquela que a arquitectura cria; porque na verdade não há [e isso seria uma conversa muito longa, mesmo muito longa] paisagem sem arquitectura.

Não me parece por isso que falar de desenho quando se fala de arquitectura seja redutor.
De todo.
Afinal [a inteligência d]o desenho é a única possibilidade de a arquitectura ser. Porque o desenho arrasta naturalmente, e sem grandes presunções literárias, essa coisa que António Machado apelida de Corpo Histórico, ou de Disciplina; porque o desenho é ele próprio o instrumento de erudição que a arquitectura detém como princípio e, sobretudo, como fim em si.

Bem sei que a teoria e a história abundam lá pela cabeça de António Machado, reconhecendo, claro, que também me distrai passar os olhos por esses sagrados tomos de cabeceira que todo o arquitecto diz ter lido. Afinal são eles que nos ajudam a perceber aquilo que não conseguimos depreender de outra forma: a leitura do desenho.

Mas descanso: a defesa da teoria não é, em António Machado, um priorado.
Afinal é António o primeiro a saltar em defesa do desenho; desse simples desenho que tudo garante, e que tudo abrange, em casos onde isso é gritante. Ou não fosse essa mui admirada Fundação Ibero-Camargo a mais expedida explicação sobre a natureza desse “redutor” desenho que despreza a paisagem, porque a reinventa; que é erudito, porque garante a manutenção desse aprazível corpo teórico-histórico; que o uso, de forma lúdica e descomprometida; que o inverte, e o devolve, perturbado e confuso, num tabuleiro de marfim.

[passagem subtil para A Arquitectura da Moral]

Na verdade a origem deste doce embate é outra: a da Casa do Gerês, que sim: é desenho. Erudito. E nesse sentido, independentemente de lhe conseguirmos ou não tomar o gosto, a altercação de António Machado é um tanto ou quanto desprevenida. Ou, enfim, precipitada.

Na verdade tanto (me) faz se a casa acompanha esse zeitgeist mais ou menos displicente. Porque, ao contrário dos outros exemplos que António refere [a que se somam concerteza mais uns quantos], a casa é devedora de uma qualidade de desenho que a torna numa peça exemplar de arquitectura.

Assim, se quisermos de facto pensar sobre a Casa do Gerês, temos de perceber o que irá na cabeça de quem a desenhou.
É que, quanto a mim, o problema da obra da Correia Ragazzi [que não é assim tanto pós-Souto de Moura como AM afirma; dado Graça Correia ser, porventura, a sua mais fiel discípula: vejam-se os seus esquissos, iguais, mesmo nos erros perspecticos, aos de Souto de Moura] inscreve-se exactamente na ideia defendida por Mário André.
Ou seja: a paisagem enquanto tema.
Ou seja: a explicação da arquitectura através de algo que lhe é intrinsecamente externo.

O que é, afirmo, um engano. Alias, um duplo engano.

Evidentemente não acredito numa só palavra de Graça Correia quando explica a consola da Casa do Gerês pela necessidade de manter a permeabilidade do solo. A justificação legalista é, na verdade, uma (mais ou menos) elegante fuga ao debate arquitectónico; fenómeno aliás recorrente nos autores da Escola do Porto [ex: Siza a explicar uma qualquer obra pela simples descrição de um programa].













Casa do Lousado, Correia Ragazzi, 2008; via Architectural Grammar

















Marcel Breuer, Preton Robinson House, 1947, via Smithsonian Archives (que se recomendam vivamente)


De igual modo duvido que o facto do piso superior da Casa do Lousado ser totalmente fechado para o exterior (com excepção do pátio, aberto apenas por cima) se explique pela recusa em lidar visualmente com a “feia” paisagem que se desenvolve ao fundo, para lá da margem do rio, enquanto o piso inferior procura a verdejante próxima, num maternal e romântico enlace com as alegrias da beleza natural.

Na verdade a Casa do Lousado explica-se (muito) melhor pelas memórias da Preston Robinson House, do Breuer, que a dupla Correia Ragazzi procura reinterpretar através, exactamente, do uso do desenho enquanto instrumento de domínio da cultura, da história e da teoria arquitectónicas.





















Marcel Breuer, Preton Robinson House, 1947, via Smithsonian Archives

Evidentemente que [o desenho da Casa d]o Lousado usa-se do volume superior cego para enfatizar o vazio inferior (a Sala), confirmado aliás pelo recurso aos envidraçados que, abertos, deixam as esquinas livres de qualquer elemento estrutural.

Em certa medida esse volume suspenso é semelhante ao truque cenográfico da consola da Casa do Gerês, embora o domínio do desenho seja, no Lousado, menos apurado, recorrendo a soluções pouco mais que óbvias [veja-se a tangencia da laje do corpo superior no terreno, da parte de trás da casa; ou a insensatez de encerrar os quartos para um reduzido pátio de onde apenas se vê o céu] que irão, alias, condicionar negativamente o próprio uso que os habitantes farão dela.

E no entanto aquilo que me faz desconfiar de Correia/Ragazzi não é tanto o (mais um menos bem conseguido) desenho das coisas; mas exactamente esse discurso que o procura preterir – ao desenho, e à sua autonomia –, em função da necessidade de legitimação da arquitectura por aquilo que lhe é extrínseco. Que, no caso da dupla, é, sempre, o mesmo tema: a paisagem.

Há obviamente um paradoxo entre o discurso articulado pela palavra e o próprio discurso do desenho presente nas suas obras. Como há também uma clara vontade em suprimir toda a cultura que o desenho acumula, em detrimento de uma espécie de moral, que passa pela aceitação do belo, e pela rejeição de tudo o resto.
Há , aqui, uma questão ideológica; diria até religiosa: a noção que a natureza (como se a paisagem devesse alguma coisa ao natural) é bela em si. E, por oposição, a ocupação dessa paisagem é uma espécie de pecado mortal.

Ora, o problema aqui é que tudo o resto é, de facto, a (nossa) realidade: essa paisagem feia que Mário André tanto lamenta existir. E nesse sentido Correia/Ragazzi posicionam-se, em tese, como impotentes para lidar com a realidade; pressupondo-se que a sua arquitectura só poderá existir numa espécie de Paraíso Perdido – condição, aliás, próxima das imagens que nos chegam do Gerês; nem mais nem menos o sítio da sua obra mais acarinhada.

Diria que, no dia em que Correia/Ragazzi se conseguirem libertar dessa demagogia que lhes tolhe os sentidos, e começarem a tirar partido da realidade que os acerca, as suas obras (nos) serão muito mais úteis, e muito mais consequentes.

Até lá, serão, apenas, belas formulações fotogénicas.

Sobre o desenho

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Casa no Gerês, Correia Ragazzi, 2003/06














Casa 1 em Penafiel, Cláudio Vilarinho, 2005/...

Mais cedo ou mais tarde a diferença entre desenhar bem e desenhar mal fará toda a diferença.

Quer(o) dizer: a arquitectura não se pode apenas medir pela intenção, pela adequação ou pela ideologia, nem mesmo pela ideia ou pelo lugar. Ou pela teoria, qualquer que ela seja.
Pelo dinheiro ou pela falta dele, e muito menos pela materialidade.
Pelo programa, pela tipologia ou pela forma.
Pelo acaso. Pelo cliente. Pelo autor. Nem pela originalidade.

Quer(o) dizer: a arquitectura pode medir-se através de tudo isso.
Só que isso não basta.
Porque, no fim, há sempre o desenho. A inteligência do desenho.

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