Quando as Catedrais eram Brancas, notas breves sobre arquitectura e outras banalidades, por Pedro Machado Costa

| Subscrever via RSS

Doctor Pangloss

| |

















Susana e os Velhos, Rembrand, 1647

Caro Daniel,

Só agora tive oportunidade de ler a réplica ao Susana e os Velhos: o esforço e a reciprocidade são, claro, estimáveis e, por tal, motivo de reconhecimento.

Antes de mais uma clarificação: se escrevi truculento em parte alguma do meu anterior texto, isso dever-se-á necessariamente à contingência do lapso, do desvio ou do simples acidente. Porque embora tenha especial carinho por diatribes e outras afeições tumultuosas – que, ao contrário da ideia de João Lopes que tem o cuidado de citar, julgo serem sinais de profunda convivência democrática –, não faria parte dos meus objectivos para com A Barriga o uso de qualquer tipo de violência, cinismo caricatural ou ironia grosseira aquando da escrita de Susana e os Velhos.
Nem sequer tinha consciência que o Daniel tivesse uma posição oposta (logo errada) à minha, neste caso particular do (projecto) do Museu dos Coches; pelo que, acredito, os equívocos interpretativos, a terem existido, possam estar definitivamente ultrapassados.

Mas então qual é de facto a razão de trocarmos posts assim tão oficiosos? Na verdade julgo não haver razão assim tão grande mas, apenas e só, questões de pormenor (que, até ver, são as razões mais interessantes).
Diz o Daniel a certa altura que não pretendeu recriar-se num Pritchard ao serviço da arquitectura. Esse Printchard que, admito, pareceu mesmo partilhar o teclado consigo aquando da escrita do texto originário desta nossa conversa.

Ora, se não foi Printchard, foi concerteza o imoderado optimista Pangloss.
É que, Daniel, o seu texto, – ou antes: a atitude generosamente ampla do seu texto – por pretender ser politicamente correcta e genuinamente estóica na procura de uma verdade (que, já agora, nunca iremos encontrar) sobre as virtudes ou defeitos do projecto de Paulo Mendes da Rocha, tornou-se numa espécie de contra-senso para quem, como o Daniel, é arquitecto.
Ou seja: Daniel quer perceber um fenómeno do domínio da arquitectura à força do sacrifício da sua própria educação e cultura arquitectónicas; que é praticamente a mesma coisa que querer ganhar uma partida de xadrez á custa do sacrifício do próprio Rei.

Bem sei que A Barriga tem pretensões (mais uma vez sem qualquer tipo de carga negativa) pedagógicas. Porventura é essa qualidade que faz d’A Barriga o blog arquitectónico mais visitado cá por casa. E no entanto é essa qualidade altruísta sobre a expressão da arquitectura na comunidade que de certa forma vai tornando redundante qualquer análise mais profunda (para não usar a palavra crítica que tanto nos parece afastar) que A Barriga possa fazer de um determinado fenómeno; pelo menos do ponto de vista de quem procura ler (sobre) arquitectura.

Não tenho nada a opor a que A Barriga faça derivações sobre as propriedades morfológicas ou programáticas de um determinado projecto com o intuito de tornar o discurso o mais aberto possível. Acredito mesmo nos benefícios e na utilidade dessa acção informativa perante um público com poucas oportunidades de aceder a informação disciplinar, de forma clara e descomprometida. Eu próprio me incluo por vezes nesse grupo, se bem que normalmente em outras áreas.

E no entanto não creio que essa abertura surta qualquer tipo de efeito para o próprio Daniel. Porque se acredita de facto em abertura, transparência e democracia deveria, por exemplo, tentar explicar porque teria sido importante para a abertura, a transparência e a democracia a existência de um processo aberto, transparente e democrata na selecção da melhor proposta para o Museu dos Coches em Belém.

É que todos estes assuntos qu’A Barriga procura apresentar são, em limite, os temas que se pensam e discutem através de propostas de arquitectura, através de projectos e de ideias: é para isso que serve um concurso. Sem ele – sem essa vontade da nossa democracia em tentar perceber o que é que anda a fazer – a sua discussão é inútil, porque extemporânea.

Admito aqui um defeito. Um defeito que, ainda assim, julgo, é partilhado por todos aqueles que desenvolvem a sua actividade quotidiana em torno de uma qualquer especificidade, inclusivamente o Daniel: a curiosidade e a disponibilidade para a análise de um determinado fenómeno são diametralmente opostas à quantidade (vá lá, qualidade) de conhecimento que se tem sobre esse mesmo fenómeno. Por outras palavras: quanto mais sabemos sobre uma coisa, menos paciência vamos tendo para ficar maravilhados com aquilo que nos passa pela frente.
Chame-lhe pessimismo ou cansaço; a verdade é que a virgindade só se perde uma vez, mesmo que essa vez, no nosso caso, se arraste durante anos. Por isso não é simplesmente possível olhar sempre com a mesma capacidade de espanto para coisas que fomos sendo treinados para pressentir.

O mais natural para um compositor será desconfiar logo à partida de uma partitura que pareça ter notas fora de escala; como o mais natural para um escritor será desprezar um livro cuja primeira página que abra esteja ferida de erros de sintaxe.
Ou antes: esperamos sempre que os erros de sintaxe e as notas fora de escala tenham origem noutro tipo de autores: aqueles jovens sempre tão arrogantes que por aí pulam feitos uns lobos. Ou porque se querem fazer ouvir. Ou porque acreditam que através de um erro de sintaxe possam descobrir a salvação do mundo. Ou, simplesmente, por terem cometido um erro grosseiro.

Não creio que Paulo Mendes da Rocha necessite, hoje, de se fazer ouvir. Nem acho que Paulo Mendes da Rocha tenha ainda a ingenuidade de querer mudar o mundo. A mim, infelizmente, só me resta a terceira explicação.

Pela leitura do Discurso Directo percebi algumas reservas ao projecto do Museu; mais diluídas em precauções de carácter social e urbano do que as minhas. E mais abertas a revisão futura.
Acredite, meu caro Daniel, que gostaria que tivesse toda a razão do seu lado, e no fim de contas o museu fosse uma extraordinária obra de arquitectura.

Outras diatribes haverão concerteza, para mútuo entretenimento. E não se preocupe com mais nada: a probabilidade de desistência da minha parte é muito superior à sua. Até lá.

6 comentários:

AM disse...

já que estamos numa de "clássicos da literatura" eu diria que as vossas (e minhas) picardias não passam de guerras de alecrim e manjerona...
o mais engraçdo é que estamos mais ou menos (menos os 200...) todos de acordo em como o projecto (e as suas "circunstâncias"...) é/são uma merda
a única "questão" e única diferença, é que uns tem coragem de escrever o que pensam e os outros embrulham as "questões" em exercícios de retórica à lá (arquitecta) Ivone Silva...
com um simples vestido preto eu nunca me comprometo...

Pedro Machado Costa disse...

De acordo meu caro, de acordo.
E no entanto gosto mesmo de guerras de alecrim e manjerona (enfim...gostos).

Em relação á tua questão, concordando com ela, devo dizer-te no entanto que tenho as minhas mais saudáveis dúvidas em (querer) matar (sempre) o adversário (um exemplo: o Artes e Ofícios). Primeiro porque a coisa acaba por ficar sem piada nenhuma (e se não estamos aqui pela piada, então não sei o que estamos aqui a fazer), e depois, porque corremos o risco de nos levarmos demasiado a sério.

Quanto a vestidos, como sabes, o seu uso depende da ocasião. É o "dress code" meu caro. É o "dress code".

AM disse...

odp é pacífico (como o oceano) e não querer "matar" ninguém :)
isso é demasiado freudiano para odp (e para o am) e seria dar demasiada importância ao... "contencioso" :)
odp limitou-se (depois de "assassinado"...) a vingar a sua morte :)
diria que é apenas uma questão de não perder tempo com certas... "prosas"
com o nome de "odesproposito" não tenho muitas hipóteses de me esquecer do valor disto tudo
ainda assim, estou convencido que (ele) há coisas na "nossa" blogo (+ ou -) de arquitectura, que são muito melhores que muitas publicações (veja-se o "para-normal" panorama das "revistas" ou o último JA...) da especialidade...
ainda estou à espera de qualquer coisa com um valor aproximado ao que se passou no odp com a "notícia" e a obra recentemente "secilizada"...

Pedro Machado Costa disse...

já passou a espuma dos dias? Sim? Então abordaremos o "Caso Secil" brevemente.

AM disse...

não sei se a "onda" deu para espuma...
o mar da arquitec-tuga (mesmo na blogo) tá "flat"...

daniel disse...

Caro Pedro,

Agora é a minha vez de pedir desculpa pela demora em responder.
Começo por agradecer a boa-fé e a franqueza dos argumentos. E por podermos concordar em discordar em alguns pontos de vista.
É difícil responder a tudo aquilo que aqui fica lançado. Porque fico a pensar numa série de coisas, e para explicá-las todas acabaria a redigir um manifesto ainda mais sisudo do que é meu costume.
O meu blog “evoluiu” ao longo dos anos, dentro de vários limites (entre os quais os meus) e de formas que nem eu próprio controlei completamente. E reconheço as pretensões pedagógicas, para o bem e para o mal. Não acho que todos os blogs tenham de ser sérios e não tenho essa agenda determinada. Reconheço a cada um a liberdade para se expressar do modo que deseja, carrancudo ou irónico, ponderado ou em cima do joelho. Por vezes é impossível escrever posts de outra forma. Eu faço apenas o meu blog à imagem daqueles que mais admiro e gosto de ler. Não ando por aqui a inovar.
Este post espicaça-me mais do que gostaria. E dou por mim a reflectir sobre o percurso e alguns dos momentos que o marcaram. Os motivos de algumas acções e reacções que, por vezes, parecem não ter retorno.
Há quem veja nas reflexões que faço a preocupação em ocultar opinião, em ser politicamente correcto. De dissimulação. Convenço-me que é muito difícil comunicar – que as possibilidades de chegar a alguém dependem mais da bagagem que os outros carregam consigo do que daquilo que consiga dizer. Tenho de facto vindo a estabelecer algumas regras “editoriais”, digamos. Uma delas, que vem do início do meu blog, é que enquanto espaço para reflectir não faço dele um púlpito para “dizer o que eu acho”. Creio que acabo por dizer o que penso, aliás não faço esforço para o ocultar. Mas acima de tudo o meu objectivo quando produzo “reflexões” é exprimir algo como “qual será a forma correcta de pensar nisto”. Inevitavelmente, estou condenado às limitações do meu ponto de vista.
Um exercício que é – foi – muitas vezes mal entendido. Por exemplo quando escrevi sobre o projecto do Largo do Rato, sobre o qual pessoas com responsabilidades políticas manifestaram asserções de gosto completamente demagógicas e sem a mais pequena substância argumentativa. Passando ao lado de uma discussão mais séria sobre o planeamento de cidade – ainda para mais numa área que é um verdadeiro desastre urbanístico-rodoviário. Enfim, toda uma outra “discussão”…
Reconheço que não tenho grandes expectativas quanto ao sucesso arquitectónico e urbanístico do projecto do Novo Museu dos Coches. Tenho os meus dogmas, e não acredito que um mau processo resulte num bom projecto. A questão do concurso público é, reconheço, completamente relevante. Têm passado pelo meu “feed” imensos concursos públicos internacionais em território europeu. Bibliotecas, museus, centros cívicos, intervenções urbanas, pavilhões expositivos. Processos com propostas riquíssimas. Lisboa só teria a ganhar com uma abordagem desse tipo, tal como tivemos para o CCB.
Aqui o que temos é uma enorme falta de cultura de um promotor – ao que parece uma responsabilidade que recaiu sobre o ministro da economia (??) – que decide passar um cheque em branco de 30 milhões. Em nome das razões do costume, esse anátema português da “pressa”. Bem escrevia o Sousa Tavares esta semana de um país entregue a não planear, não pensar e não hesitar.
E parece-me que de facto se pensa pouco. Vejamos a recente petição “a favor” do projecto. É-me impossível subscrever aquele texto. Porque não passa por ali uma discussão sobre arquitectura, antes um gesto “solidário” de defesa ao Paulo Mendes da Rocha. Eu acho que o Paulo Mendes da Rocha não precisa de ser defendido. Não é o homem, muito menos o arquitecto, que está em causa. É antes o processo que aqui está a ser conduzido, e é sobre isso que procurei levantar as minhas questões da forma mais objectiva possível. Essa minha prerrogativa obsessiva.
Isto já vai longo e deixarei para outras alturas a discussão sobre a poética na arquitectura. Direi apenas que acho que a poesia se tornou um problema do discurso académico, uma contaminação do discurso verbal em torno da obra que perdeu a correspondência com aquilo que devia ser o sentido subjectivo da forma e da sua percepção. O que não devia ter eco com registos interpretativos sem paralelo com a base formal em que pretende assentar. Ou seja, a linguagem arquitectónica não é o mesmo que a linguagem com que falamos sobre arquitectura.
Reconheço que venho a fazer um esforço consciente por me desinscrever dessa matriz académica, e a encontrar muito mais pertinência no discurso de outras origens. Aqui terei a arrogância de dizer que o dissidente sou eu. Não estou a matar o pai – ou o rei – mas também não estou a inventar nada de novo. Para nos começarmos a entender, recomendo a leitura do “mission statement” do Joshua Prince Ramus no site da REX. Não é a forma que me atrai em muitas destas novas práticas contemporâneas. É mesmo o processo de pensar. Que alguns rotulam de pseudo-complexidade e mediatismo. Eu julgo que não. Acredito que anda por ali muito mais substância do que por cá se lhes reconhece. Mas isso também é toda uma outra conversa…

Abraço,
daniel

Tags