ou (título alternativo, e bastante mais à Unidade) Em frente Camaradas, que eu vou ali a já venho!
Unidade 3, Junho 1992: Capa
A Un.3, de Jorge Figueira, e suas curiosas afinidades com os Cadernos Politika!, de 1991 (que dedica grande parte das suas páginas à Arquitectura Portuguesa, com textos de Manuel Mendes. Ai afirma Siza: a ideia surge do desejo de prestar um serviço, não do desejo de criar algo novo, mas algo melhor!)
Passou tempo demais para me lembrar do facto que me levou a aceitar o convite para escrever na Unidade. Esqueci, aliás, a razão do convite, ou o tema que deveria seguir. Sabia apenas que devia escrever sobre a Unidade. E isso, claro, obrigou-me a definir um critério de análise da Unidade: do seu percurso, dos autores que com ela colaboraram, do seu conteúdo; coisas que não me eras assim tão aliciantes.
As minhas reservas estavam, claro, directamente ligadas à memória que tinha das Unidades no tempo delas: pouco ou nada me diziam. O que me colocava desde logo naquele grupo (de críticos?) que Figueira viria a citar (porventura a menosprezar) no editorial da Unidade 3 – com a certeza de quem não os queria entender –, que o chamava, a ele e aos seus pares, elitistas e integrados [na escola, entenda-se]. Restava-me cumprir esse vício de forma, moldado há já alguns anos, que me fazia também a mim encontrar em cada Unidade um elitismo poeticamente distante ou, em alternativa (para bem desde texto), procurar achar-lhes, ás Unidades, algum fundamento.
Admito até, ao relembrar a falta de unidade formal da Unidade, ter tido a tentação de afirmar que nunca teria havido qualquer tipo de ideia unitária que por ela fosse vinculada; como que se a Unidade tivesse sempre navegado à vista, dependendo mais do humor e da inteligência de cada um dos seus directores do que propriamente de algo que fosse comum a muita gente; coisa que, em limite, e por querer ser uma revista de estudantes, relegaria a Unidade para o campo da hipocrisia (auto) intitulada. Na verdade (pensava) teria sido presunção a mais chamar uma coisa de Unidade, quando esta representava apenas meia dúzia de ideias de meia dúzia de pessoas. Mas afirmar isso seria, se não uma falsidade, pelo menos um modo leviano, um tanto ou quanto pessimista, de olhar para a coisa; o que poderia incorrer em indesejável injustiça.
Un. 3, Junho 1992: pág. 105
Fernando Távora a dizer: o Estilo não Conta!... afinal conta ou não conta?
Na minha memória a Unidade seria um objecto facilmente mapeável. Como uma espécie de decadência construtivista em época em que a razão de ser do construtivismo se tinha diluído na simples retórica politica, a Unidade colava-se à Escola e, sem no entanto perder o tom caustico (Não Há Romance Neste Escola, que alias está bem próximo do tom propagandístico), tomava como indiscutível a ideia que A Arquitectura Não se Ensina!
Essa tese tinha, entretanto, e com a naturalidade que quem já não necessitava de lutar contra nada nem contra ninguém, despertado particular aversão em muitos dos (recém-chegados) alunos no inicio da década de 90, sobretudo a partir do momento em que tinham julgado descobrir que a arquitectura (já) não se ensinava devido (apenas) á incapacidade de ensinar da própria escola.
O problema residia mais uma vez (talvez naquela altura pela primeira vez) no choque entre a tão almejada ideia de uma Escola de Tendência (unitária, já se vê) e um conjunto de indivíduos cada vez mais heterodoxos, incapaz de se rever da diatribe de quem não aceitava a multiplicidade de opções.
Nesse sentido a Unidade representava, para muitos (desde aqueles que a liam, aos outros a quem não lhes despertava qualquer tipo de curiosidade o conteúdo por detrás das suas capas), uma espécie de último reduto da própria ideia de unidade, oposta por isso à noção de indivíduo, e portanto avessa a qualquer alteração ideológica. E ainda por cima a revista era bem mais difícil de pôr em causa do que qualquer outra coisa vinda da academia; simplesmente porque a Unidade era feita do lado de cá das barricadas, como se fosse um agente infiltrado nas hostes niilistas e hedonistas que daí para a frente (cada vez mais) iriam popular nos bancos da Escola Pública.
Na verdade só alguns anos depois da minha passagem pela FAUP é que me permiti rever a minha posição sobre aquilo que até ali era a minha interpretação do conteúdo (heurístico, vá) da Escola do Porto; que me parecia também ele navegar à vista. A Arquitectura não se Ensina! aparentava ser (só) uma grande balda.
Foi preciso que Alves Costa publicasse as Considerações sobre o Ensino da Arquitectura para me (re)lembrar que o tiro ao alvo aos instrumentos pedagógicos da academia foi, para ele, como para muitos daqueles que ajudaram a construir a Escola do Porto, também (sobetudo) uma posição académica. Ou antes: uma posição altamente pedagógica; como se, por mais paradoxal que isso possa parecer, o ensino da arquitectura pudesse dispensar o ensino, apostando todos os trunfos na arquitectura.
Evidentemente que esse exercício de suspensão da academia necessitou do envolvimento de gente que mais cedo ou mais tarde foi incapaz de separar a arquitectura da FAUP. E essa foi já a Escola pela qual passámos na década de 90; cujas formas e os esquiços feitos em papel pardo faziam já adivinhar cansaços e vícios de forma que punham em causa a consciência (quer do corpo docente, quer dos próprios alunos que não tinham relação nenhuma com a história) da tão almejada Escola de Tendências.
È neste ponto, quanto a mim, eu se me apresenta, hoje, particularmente útil a Unidade. A Unidade é, sempre foi, um produto da Escola do Porto. Logo à superfície isso é demais evidente : desde a selecção de projectos publicados (com amplo recurso aos autores locais), ás entrevistas (com amplo recurso aos professores locais, e também a MGD, que se iria tornar em certo sentido o legítimo herdeiro das míticas aulas do Távora), aos temas abordados (escola, crítica à escola, prática académica, crítica à prática académica).
Mas, mais do que isso, a Unidade representou uma espécie de grande(ssíssimo) abanão. Abanão a todos aqueles que tinham adormecido pelo caminho ou, simplesmente, se esquecido do vontade comum que deu origem à Escola. Abanão aos alunos que, como eu, andavam a ler o pornógrafo Koolhaas em livro de bolso convenientamente encoberto pelas páginas da Profissão Poética. Um estalo, portanto.
Politika!, 1991: págs. 74-75
Carrilho da Graça terá uma outra leitura: (sobre o) trabalho de Alvaro Siza. O aspecto mais significativo parece-me ser a intensidade artística.
Não é que houvesse lugar a qualquer tipo de Generation Gap com 20 anos (como aliás Figueira regista), mas antes uma espécie de necessidade nascida da letargia em que a escola tinha entrado com a (verdadeira) democratização do ensino; que se afastava em muito dos moldes humanísticos (chamemos-lhe assim) queridos da velha guarda; a que um grupo de alunos desejava, não abater, mas apenas e só acordar (ou então, porque não, substituir?).
Politika, 1991: págs. 77-79.
Só a poesia conta, só a poesia fica; diz-nos Eduardo Souto de Moura
Assim, sem o esconder, a Unidade assumiu-se como modelo ideológico de rejuvenescimento de uma ideia que não era já maioritária na década de 90. Obliterada a Revolução, a capa da Arquitectura ou Chuva não estava ainda assim tão longe do Cadernos Politika! que se tinha ela própria debruçado sobre o ponto de rebuçado da Escola do Porto (Carrilho da Graça incluído) algures em 91; e lá encontramos (os) nomes que depois iríamos acompanhar nas páginas das Unidades uma e outra vez, sem muita surpresa; ao mesmo tempo que se trincava sem qualquer pudor uma outra Kapa, bastante mais liberal, na qual Jorge Figueira apareceria, encarnando perfil de poeta de gola alta.
Kapa n.º6, Março 1991
Entretanto. do outro lado da barricada, meninas nuas pedem a nossa atenção
Se a Unidade foi uma revista de alunos de uma escola, foi-o sobretudo, a revista dos alunos da Escola do Porto quando a Escola do Porto já não lá estava. Mais poética e contemplativa da sua condição do que propriamente atractora de fogos, de gestos radicais mas ainda assim românticos e saudosistas, permitia-se falar com Luís Cunha (uma curiosidade para os alunos) e discutir com Manuel Graça Dias, ao mesmo tempo que se passeava pelas paredes de betão de uma escola que nunca mais estava pronta.
Há mérito nessa Unidade; e, sobretudo, há mérito na vontade que fez essa Unidade. Porque não havia de facto nenhuma Unidade. Se os seus responsáveis são hoje membros da academia e/ou corresponsáveis pela arquitectura portuguesa institucionalizada, são-no porque tinham já um envolvimento grande com a prática disciplinar que lhes era próxima (o que é assinalável, se pensarmos que todos foram universitários da década de 90); e a Unidade foi só o primeiro sinal da sua capacidade de envolvimento e de compreensão pelo contexto que lhes era próximo (quer em termos geográficos, quer em termos intelectuais); pelo que não será de espantar que, passados alguns anos, os mentores da Unidade fossem já responsáveis por caracterizações mais ou menos estáveis da produção arquitectónica recente em Portugal.
Mesmo em termos de registo, a Unidade sempre foi tento uma certa unidade. Há um lado poético na coisa que, aliado a uma certa militância, iria, se não criar, pelo menos sedimentar um certo ponto de vista sobre aquilo que poderia ser o contorno intelectual da arquitectura erudita feita com traços do Porto. Notou-se através dela a crescente tematologia situacionista, que depois iria ter continuidade noutros momentos editoriais de Insi(s)tente profundidade, e depois uma aterragem suave nos jardins entretanto arranjados da FAUP, já na última U6, com ecos na futura Dafne.
É quase inacreditável ter havido uma Unidade sem qualquer unidade á sua volta. Foi uma revista que teve sempre consciência do seu umbigo (mesmo quando tinha cotão), quando muita gente já não tinha (ou não era capaz de encontrar) o seu próprio umbigo.
E por isso o fim dessa Unidade coincide com o fim de um certo modo de ir à Escola. Enquanto a Unidade 4 estava a ser discutida num café qualquer do Porto por um grupo de alunos obscuros (julgo que na época se vestiam todos de preto), todos os outras andavam a pensar sobre a melhor forma de sair dali. Foi talvez esse o único grande pecado por ela cometido: os ratos são sempre os primeiros a abandonar o navio, terá um dia pensado a Unidade.
Kapa n.º6, março 1991: págs. 6-7.
Lado a lado com o inocente e muito liberal Independente, Jorge Figueira confirma Souto de Moura: a poesia é o que importa! As meninas nuas ficarão para mais tarde.
Nesse mesmo sentido poder-se-ia dizer que a grande virtude da Unidade é também a sua falência: fazer uma revista encerrada na ideia de unidade, quando nada a podia já sustentar. E no entanto, a Unidade e a Escola que a abrigava lá foram produzindo alguns dos momentos da cultura arquitectónica nacional dos últimos tempos. Se não os mais felizes, pelo menos os mais inesperados, contemplativos, inteligentes, sarcásticos e mordazes, românticos e anti-românticos simultaneamente.
E curiosamente, ou não, esta continua a ser a condição e o modo de estar de quem os fez. E ainda bem. Porque ela, a Unidade, É Bem Feita!
E a Unidade serve para quê?
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