Susana e os Velhos, Tintoretto, 1560
Li, com atenção, a análise d’A Barriga ao projecto do Novo Museu dos Coches. Reli uma segunda vez. E não consegui chegar a nenhuma conclusão sobre o posicionamento de Daniel Carrapa sobre o objecto que se propôs analisar.
ao colocar de lado a questão do ‘gosto’ não pretendo avançar com uma análise ‘tecnocrática’ ou muito menos neutra do projecto. Mas não vejo outra forma de falar objectivamente sobre ele [claro que vê, meu caro, claro que vê]; avançando desde logo com a proposta de confrontar o projecto, objectivamente, com valores contemporâneos de arquitectura [que são]:
O projecto materializa um equilíbrio entre massa construída e os espaços vazios?
Confere identidade ao lugar?
Promove a diversidade de usos?
Permite uma boa apropriação do público?
Acolhe a multiplicidade e riqueza de actividades?
Experimentação?
Evasão?
Informação?
Promove uma boa vivência, permite convívio, isolamento, confere segurança?
O espaço envolvente é qualificado? Tem “funções”? Resulta numa boa urbanidade do lugar?
E a função Museu? Porque um museu não é apenas um edifício, não é apenas arquitectura, é acima de tudo conteúdos?
Aquela expressão infraestrutural serve a identidade do Museu dos Coches?
Como nos relaciona – exterior e interiormente - com a sua história?
Valoriza o seu potencial turístico? Economicamente, é uma mais-valia?
Porque, como sabe, há projectos que materializam um equilíbrio entre massa construída e espaços vazios que são geniais, e projectos que materializam um equilíbrio entre massa construída e espaços vazios que são medíocres. Como também há projectos que não materializam qualquer tipo de equilíbrios entre massa construída e espaços vazios que são, outra vez, geniais, e projectos que não materializam qualquer tipo de equilíbrios entre massa construída e espaços vazios que são, infelizmente, banais.
Experimentação? Quem? O Pietila?
Evasão? Sullivan ou de La Sota?
Informação? Estará porventura o Daniel a pensar no Hertzberger?
Desde quando é que um edifício que promove uma boa vivência, permite convívio, isolamento, confere segurança é um edifício genial? E o contrário… recordo muitos.
Das questões de valorização do potencial turístico interrogo-me: o que é que a arquitectura tem a ver com isso?
Lembrar-se-ia alguma vez de abordar um Livro do Herberto Hélder como experimental (sim/não), evasivo (sim/não), ou através da análise qualitativa do seu espaço envolvente? Não creio.
Por isso obras valiosas são tão escassas. E todas estas não são, ao longo da história, outra coisa que não crítica e paródia a outras grandes obras; que levantam, claro, o único problema que a crítica distante e distanciadora é incapaz de resolver: a sua própria natureza limitada e limitadora.
A crítica feita dessa maneira, meu caro, é sobretudo uma autocrítica, que fica escrava das suas próprias limitações, sem (sequer tentar) perceber o que tem à sua frente.
basta, segundo as indicações evangélicas, tentar (como cordeiro entre lobos) ser sensato como a pomba, mas astuto como a serpente, e abandonar o papel das virgens insensatas para adoptar o das virgens prudentes.
Todos podemos alcançar um alto nível de crítica usando a ironia, usando tópicos, prejuízos, sentidos comuns, ideologias, paranóias pessoais e [até] o mau gosto burguês
Não tenho princípios (...) julgar com as ideias e os sentimentos sempre me pareceu um destino soberbo. A indiferença pelas chamadas virtudes cívicas e para com os apetrechos mentais do instinto gregário resulta não só útil para o artista [para o crítico], mas é seu dever absoluto. Se isto é amoral, a culpa é da natureza (…) A sinceridade é o grande obstáculo que o artista [crítico] tem que vencer. Unicamente uma disciplina prolongada, uma aprendizagem de simplesmente sentir as coisas, pode levar o espírito ao seu próprio culminar.
É uma espécie de infelicidade que acontece a todos. Uma infelicidade para PMR, uma infelicidade para Belém. E uma infelicidade para mim, que gosto de um e do outro.
Obrigado.
11 comentários:
deixei passar mais um tempo sem comentar para ver as "reações"...
por esta altura já deves estar no "index"...
queria ter comentado... mas fiquei tão intrigado com a ilustração do post que decidi contextualizar no desconexo a historia de Susana para os leitores mais desprevenidos.
http://des-conexo.blogspot.com/2009/03/proposito-de-susana.html
AM: index. Isso é bom ou é mau?
Tiago: a Susana, a Susana
Tiago,
agradeço, em nome de Susana.
O link para o Desconexo está feito, no sítio do costume.
depende, há dos bons e há dos maus
no meu caso, ter sido "eliminado", é uma honra e um orgulho :)
eliminado? iluminado, querias tu dizer?
não, por Deus :)
queria mesmo dizer ter sido eliminado, literalmente :) das caixas de comentários do teu DC :)
deixa para lá :) são apenas (tristes) recordações da blogosfera :)
Caro Pedro,
obrigado pelo link.
quando arrumar a casa no desconexo vou estudar um cantinho para links.
quanto à susana continuo intrigado e não consigo montar as peças todas para deslindar a metáfora.
mas, se calhar, são estes mistérios que trazem a animação toda aos posts!
AM: lamento a iluminação. Mas prefiro sempre ler AM o oDP do que em qualquer caixa de comentários (a não ser que seja na caixa de comentários d'As Catedrais).
Tiago: a Susana, a Susana.
O que me incomoda no projecto do novo museu dos coches não é o projecto do novo museu dos coches. É, isso sim, o processo que está na sua génese e que lhe dá razão de existir. Obras de(o) Regime sempre as houve e vão continuar ser realizadas e pensadas(?). A arquitectura em Portugal, aquela da qual se fala, se ensina e se estuda, resulta da encomenda e do financiamento do Estado (monárquico ou republicano) e do clero. Fora deste eixo, existem casos e obras dignas de referência é verdade, mas poucas e de contexto especifico. Note-se que, por ex., para o CCB foi realizado um concurso público (restrito, é verdade, mas ainda assim um concurso). Tal como para a Casa da Música. (2 ex recentes) Ora é aqui que reside um dos dois vectores do meu descontentamento. Entregar uma obra desta envergadura directa e solitariamente a um arquitecto, nacional ou estrangeiro, pressupõe (ou devia…) um conhecimento da sua obra, da sua metodologia de trabalho. Supõe que o resultado final será sempre do “agrado” do promotor (sendo esta como é uma encomenda pública). Devia, isso sim, ter sido realizado um concurso (aberto ou restrito, enfim) de arquitectura para este caso. Como forma de potenciar a discussão e asserção da melhor solução possível. Mas uma vez mais, tal como aconteceu com a Casa da Música, não se aclara algo absolutamente indispensável: o programa. A sua pertinência, exequibilidade e razoabilidade – financeira e museológica. E o porquê, já agora, de ser o ministério da Economia (!?) a responsabilizar-se pela encomenda desta obra. Porque, e colocando-me na pela de P. M. da Rocha, se o programa é claro (de ponto de vista do promotor) e se os prazos são exíguos (2010, Comemoração do centenário da implantação da Republica), pouca coisa mais há a fazer do que pôr mãos-à-obra e dar razão à encomenda.
O segundo vector do meu descontentamento prende-se com a falta de uma visão global e integrada da cidade e dos seus elementos constituintes. Esta poderia ser muito bem a oportunidade para pensar Belém e a plataforma que vai desde o Porto de Lisboa (outra bela estória…) até à Docapesca como um “Bairro de Museus” de Lisboa (com o pensamento em Viena ou Madrid, por ex). Que sentido por exemplo faz hoje toda a zona em frente aos Jerónimos não estar ainda pura e simplesmente restrita a peões e a transito especifico? E a linha do comboio? O seu enterramento neste troço poderia ser equacionado? É disto que eu falo. É disto que deveríamos falar. Porque a arquitectura começa aqui.
Caro São Tomás,
concordando com (quase, quase) tudo o que referiu, tenho apenas a referir que de facto um concurso (público, limitado, por convites, como queiram) teria sido um modo mais evidente (para o próprio cliente) de analisar vários pontos de vista sobre o mesmo problema.
E no entanto devo dizer que, face ao paradigma actual, os concursos não são propriamente uma garantia de reflexão. Servem por vezes, até, o contrário: legitimar uma escolha feita em nome da visibilidade, mais do que em nome da qualidade.
Veja-se o caso recente do Concurso para Serralves, em Matosinhos: o Júri foi de certo modo consensual que o projecto vencedor (Sejima) não seria porventura a melhor proposta apresentada.
Aqui venceu a lógica de escolher um grande nome, que legitimasse Serralves. Lógica tola, já se vê: teria sido mais profícuo para Serralves arriscar em outros menos conhecidos autores; até porque se o projecto resultasse Serralves tornar-se-ia (potencialmente) num exemplo; e não numa simples instituição que segue as modas do mercado (da arte e) da arquitectura.
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