Quando as Catedrais eram Brancas, notas breves sobre arquitectura e outras banalidades, por Pedro Machado Costa

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Da Sofia, ainda

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Sofia dormindo, Casa Poli, Pezo von Ellrichshausen, Coliumo [Chile], 2005 (via Cristobal Palma)

Note-se: Sofia vive e trabalha em Concepción.
A questão aqui está em saber-se que género de Concepción é esta.
Se é o nome de uma cidade no Chile.
Ou se, pelo contrário, é a melhor designação para um estado de espírito em permanência.

Adenda à entrada anterior

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Depois há ainda a Sofia von Ellrichshausen, que vive e trabalha em Concepción.

Cruzei-me com ela apenas em duas ocasiões, separadas por poucos dias, numa praça da zona velha de Lima, já muito perto do oceano; onde, numas bancas improvisadas se vendiam oitavos de frango e outras comidas um tanto ou quanto bizarras.
Das duas vezes Sofia vestia o mesmo casaco, impecável, num corte decididamente europeu, de cabedal negro.
Ao mesmo tempo que falava de Buenos Aires com o carinho com que as pessoas falam da sua terra natal, sorria.
Sorria sempre, na verdade.
















Casa Fosc, Pezo von Ellrichshausen, San Pedro [Chile], 2008 (via Cristobal Palma)

Sofia sorria, talvez, porque aquilo que lhe ocupa os dias é, para ela, sinónimo de felicidade.
É certamente sinónimo de felicidade.
Porque só assim, com sinónimos de felicidade, se explicam as coisas maravilhosas que Sofia vai fazendo enquanto vive e trabalha em Concepción. Acompanhada por Mauricio Pezo, que nunca cheguei a conhecer.

Breviário das Sofias de quem gosto

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Les Seins Miraculeux, Sophie Calle, 2001


De repente não consigo lembrar-me de nenhuma Sofia que me seja minimamente desagradável: desde a Catedral de Sofia e a própria cidade que a acolhe, ao Museu da Rainha Sofia, passando pelas linhas, e que linhas, de Sofia de Mello Breyner. Os filmes da Sofia, ou a Sofia nos filmes. A Coppola ou a Loren, respectivamente. Ou então a Meryl Steep, que embora não se chamando Sofia, usou do nome n'A Escolha de Sofia. Há a Sofia Polgar, polaca, de quem o Nabokov fala, abismado, sobre um problema complicado de xadrez. A Sofia Fatale, que é aquela advogada que fica sem o braço no primeiro Kill Bill. E a russa Sofia Gubaidulina. A Sophie Marceau, de quem não (re)conheço bons filmes, mas que aparecia na capa de uma photo muito antiga, daquelas que andava lá por casa na minha meninice.
Depois há a igreja de Santa Sofia de Constantinopla, que agora está em Istambul. Ou as coisas da Sophie Calle. E, evidentemente, o Campo de Santa Sofia, em Veneza.

A Internacional

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Spomenik #1 [da Série Spomenik: monumentos da antiga Jugoslávia], Jan Kempenaers, 2006, Crown Gallery
(com um agradecimento especial ao Nuno Merino)

Da tendência para a reclinação e do seu desejo

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Numa entrada anterior d'As Catedrais, Pedro Jordão refere um tema particularmente caro a muitos arquitectos. Um tema, aliás, que tem motivado alguns dos textos que por aqui se vão escrevendo: os concursos de arquitectura.
Ou antes, o problema que representa a sua actual escassez.

Diz Jordão:

um pormenor que quase sempre falta quando se fala nos atropelamentos constantes dos concursos, muitas vezes com a cumplicidade da nossa Ordem: é que a indecência não está apenas nos projectos atribuídos sem concurso, mas na desproporção gritante entre concursos abertos a todos e concursos por convite (e esses não faltam, só não são publicitados)
Na verdade as palavras de Jordão assentam num ponto de vista erróneo, que representa uma inversão das razões que tornam um concurso num elemento importante para a arquitectura.

A ver: um concurso de arquitectura é geralmente o processo mais sensato na escolha da (melhor) solução para determinado problema.
A existência de múltiplas propostas a responder em simultâneo a um mesmo objectivo permite, desde logo, a análise alargada das questões que lhe deram origem. Isto, claro, amplia em muito a probabilidade de se obter uma leitura crítica dos pressupostos do programa de intervenção.
Por outras palavras: um ponto de vista, uma ideia ou uma solução, uma metodologia de intervenção patentes em cada proposta apresentada a concurso constitui, em primeiro lugar, mais uma possibilidade de leitura crítica das condições originalmente expressas. Desse modo serve-as, valida-as ou, em limite, contribui para a sua própria revisão.

Cada projecto apresentado a concurso é em primeiro lugar um teste, que avalia os requisitos que o originam. Confrontando-os com outro tipo de informação. Implicando-os a uma determinada condição formal que até então era não passava de mera suposição. Determinando-lhes correlações físicas e funcionais que antes só existiam num hipotético organograma. Dando-lhes, enfim, uma possibilidade real.
É através da comparação entre as várias propostas e aquilo que lhes dá origem (uma vontade, um determinado programa ou função, etc.) que se pode confirmar as potencialidades dessa vontade, ou desse programa; ultrapassando-se porventura as naturais limitações do conceito inicial.













La Maya desnuda, Goya, 1800

Depois, claro, os concursos oferecem-nos esse evidente benefício: poder olhar para várias propostas equivale a poder seleccionar aquela que mais adequa determinada hipótese às finalidades próprias do problema original.
Partindo-se do pressuposto que cada proposta a concurso implica o conteúdo programático a que procura responder, aquilo que nos é oferecido através da leitura das várias hipóteses em presença é, sobretudo, a demonstração, ampla e necessariamente heterodoxa, da aplicação desse mesmo conteúdo programático, construída a partir de diferentes objectivos; esses sim, externos à vontade original, e que lhe irão conferir maior ou menor valor.

Cada proposta em concurso é, em todo o caso, uma equação: entre a leitura das finalidades a que responde – cujo teor é potencialmente diverso de autor para autor – e uma hipótese de as reorganizar em função de uma vontade ou de uma ideia – estas sim, necessariamente diversas entre os autores em presença.
Logo se conclui: a possibilidade de um júri de concurso compreender as potencialidades de um determinado processo está directamente ligado ao número de experiência a que esse processo foi sujeito. Testá-las, confrontá-las e discuti-las, às experiências é, então, empiricamente, o processo que garante o melhor domínio da matéria; através do qual a obtenção de um resultado satisfatório é, aparentemente, mas facilitado.

Partindo do principio que o responsável pela análise do conteúdo de cada uma dessas propostas tem condições efectivas de compreender o que tem pela frente – o que, infelizmente, não é ainda caso corrente -, e que as conclusões a que chega são fruto da comparação de cada propostas com os pressupostos que as originam – e não, como é hoje normal, por posicionamentos ideológicos que acreditam ter -, será razoável afirmar que a sua escolha validará a melhor solução em presença.

Até aqui, julgo, Pedro Jordão e eu próprio estaremos de acordo: quanto mais propostas a concurso houver, mas garantias teremos que a solução escolhida será aquela que melhores garantias de resposta dá a determinado problema.















Venus del Espejo, D. Vélasquez, 1651

Não entanto isso não é totalmente verdade. De facto, pela força dos tempos, começa a observar-se um curioso fenómeno – que, aliás, levou a que na Alemanha, cada arquitecto tenha uma cota máxima de concursos públicos a que pode responder –: concursos onde o número de entradas ultrapassa, em muito, a possibilidade do júri garantir uma análise cuidada de cada uma delas.
E nem sequer estou a referir aqueles concursos de ideias (tipo Tyssen e afins), cujo tipo de respostas, necessariamente curtas e baseadas em meia dúzia de pontos-chave, os transforma numa espécie de passatempo para estudantes e recém-licenciados com ganas (ganas: são palavras como esta que me fazem gostar dos espanhóis) de fazer arquitectura a todo o custo.

Na verdade os concursos públicos são, actualmente, muito mais frequentados por arquitectos do que há uma década atrás.
Seja por existirem, claro, muito mais arquitectos (o que, mesmo que corresponda àquilo que os economistas chamam de excesso de capacidade instalada, é, a meu ver, positivo), seja pelo número de concursos ser reduzido (e, estranhamente, bastante menor do que a quantidade de obra pública); o facto é que, hoje, poucos concursos conheço em que o júri se dá realmente ao trabalho de analisar condignamente as propostas de todos aqueles que entenderam querer dar o seu contributo a determinado problema.

A título de exemplo, recordo aquilo que ouvi da boca de um júri do concurso para o projecto da AMI: pela simples leitura do conteúdo dos painéis, o referido júri terá escolhido meia dúzia de projectos, que depois foi analisar mais cuidadosamente. Relembre-se aqui que, ao contrário daqueles concursos internacionais onde é pedido a cada concorrente para colocar o mesmo tipo de informação em cada painel - incluído fotomontagens do mesmo ponto de vista -, o conteúdo dos painéis do concurso da AMI ficou ao livre arbítrio de cada concorrente, impossibilitando, em principio, a comparação das propostas através da informação aí disponibilizada.

Poder-se-ia, claro, afirmar que o caso do concurso da AMI (a que já agora, para não haver confusões, não entrei) se deve sobretudo à falta de responsabilidade e de ética do respectivo júri. Em tese sou levado a concordar. Até porque o número de propostas entregues não terá sido em número tão grande que obrigasse o júri a desprezar (milhares de) horas de (dezenas de) empenhados arquitectos.
É no entanto inegável que a crescente quantidade de entradas em concursos de arquitectura que se tem vindo a observar irá, mais cedo ou mais tarde, impossibilitar, mesmo para um júri dotado e empenhado, a criteriosa análise de todas as propostas; pondo dessa forma em causa as garantias do processo tal como referido anteriormente.














Vénus Dormindo, Giorgione, 1510

Evidentemente que, neste ponto, Jordão poderá argumentar que o problema não reside necessariamente no elevado número de entradas; mas antes no modelo de apresentação das propostas que é hoje, cada vez mais, paradoxal.

Terá razão Jordão: se o modelo português de apresentação de concurso – normalmente composto por um projecto totalmente resolvido, com plantas, cortes e alçados dobrados em A4 (anexado a uma memória descritiva com 50 páginas cheias de explicações acerca de esgotos e águas e coisas semelhantes, uma Critica ao Programa Preliminar, uma estimativa de custos de manutenção do edifício, varias folhas impressas com quadros de áreas, rácios, descrição de metodologias e curricula de engenheiros de RCCTE, e o projecto de acessibilidades, e de arquitectura paisagista também), vários painéis com fotomontagens ao gosto do autor, fotografias de maqueta, mais um texto curto – for substituído por um outro que não parta do pressuposto que os proponentes são incapazes de fazer projectos a não ser que o provem no imediato; talvez então seja de facto possível a um júri analisar 100 propostas. O que, diga-se, não é o mesmo que analisar 100 projectos.

Estamos, claro, a falar daquilo que lá pelo atelier apelidamos de “Concurso à Espanhola” (que, em abono da verdade, não é sequer o modelo geralmente usado em Espanha). Um concurso cujo modelo assente em duas fases: a primeira, simplificada, baseada em dois ou três painéis que apresentam uma proposta de intenções, ainda esquemática; explicada através de visualizações comparáveis (isto é: imagens retiradas sempre dos mesmos pontos de vista) e de uma maqueta (materialmente semelhante para todos os concorrentes) que possibilite ao júri integrá-la num modelo de maiores dimensões.
A partir daí, por simples mas real comparação de termos, o júri seleccionará uma mão-cheia de propostas, que deverão ser desenvolvidas mais profundamente pelos respectivos autores.

Entenda-se que as consequências de um modelo como este implicam, numa primeira fase, que o júri esteja sobretudo a comparar ideias, e aquilo que elas potenciam, assente em estratégias de intervenção, mais até do que em soluções morfológicas e tipológicas definitivas. O que, claro, implica uma cultura de risco muito dispare daquela que é hoje regra em Portugal; onde os júris preferem habitualmente escolher modelos formais e linguagens específicas. E onde os Donos de Obra preferem pagar certezas, e não comprar dúvidas.

Um outro risco – este, quanto a mim, mais sério – será o da imposição de um determinado modelo de apresentação que, concordemos, poderá pôr em causa o próprio conteúdo de uma determinada proposta; pela simples razão de existir a possibilidade desse conteúdo se tornar ilegível através de um tipo de comunicação formatado.
Nesse caso estaríamos perante uma espécie de coibição do próprio sentido de autoria; dado que, como sabemos, o modo como comunicamos determinada tese é devedor do seu próprio conteúdo; sendo que esta obrigatoriedade poderia incorrer numa espécie de Lost in Translation.
















Vênus de Urbino, Ticiano, 1538

Ainda outro risco: o da inversão da lógica do pensar arquitectura. Porque a normalização que este modelo de comunicação implica poderia, a curto prazo, traduzir-se numa acção objectivamente pensada, apenas, para responder eficazmente às questões de apresentação, e não tanto às questões de projecto.

E no entanto estou genericamente de acordo com Jordão se essa for a tese de Jordão: a necessidade de um modelo de concurso que ofereça garantias de que o trabalho de cada arquitecto seja de facto criteriosamente avaliado; mesmo que estejamos em presença de um número massivo de entradas.

Chegámos até aqui sem referir no entanto o argumento de Jordão, e aquilo que motiva a nossa aparente discordância: a existência de Concursos Limitados (ou aquilo que Jordão apelida de Concursos por Convite). Jordão acha-os indecentes. Eu, pelo contrário, acho-os uma possibilidade. E porquê?

Primeiro, porque não acredito que o (tal) modelo de concurso “em aberto” (ou à Espanhola) possa vir a ser uma realidade em Portugal, pelo menos num futuro próximo. Pela simples razão que são ainda poucos os interessados em que um concurso seja uma oportunidade de reflectir real e alargadamente sobre uma determinada matéria.
Na verdade a maior parte dos concursos públicos existe pela simples razão de ser uma obrigação legal.
Poucos são os Donos de Obra realmente desejosos em ver os seus problemas (a maior parte deles acha até que não existem problemas) analisados e discutidos, julgando que o trabalho e o tempo ocupados pelo processo são (passe a expressão) uma pura perda de tempo, e de dinheiro também.
Veja-se, a título de exemplo, os recentes casos do Museu dos Coches (adjudicado sem concurso a Paulo Mendes da Rocha), do Africa.Cont adjudicado sem concurso a David Adjaye), da Praça do Comércio (adjudicado sem concurso a Bruno Soares), ou a Sede da Fundação Champalimaud
(adjudicado sem concurso a Charles Correia); apenas para referir casos recentes a que dedicamos algumas linhas.















Olympia, Édouard Manet, 1836


Depois porque poucos são os arquitectos verdadeiramente interessados em fazer concursos; sobretudo aqueles cujo garante de trabalho passa exactamente pela sua inexistência: Siza (exemplo recente: Biblioteca de Viana), Souto de Moura (exemplo recente: Museu em Quarteira), Carrilho da Graça (exemplo recente: Museu Ibérico de Arqueologia de Abrantes), só para citar alguns dos autores a quem são habitualmente adjudicados projectos públicos sem que o processo passe pelo crivo de qualquer tipo. Ainda assim não é sem curioso espanto que assisto ao rejubilo, por parte de jovens e menos jovens arquitectos, perante tais adjudicações directas aos seus (e alguns meus também, admito) mestres; sem que percebam que uma dos factos que explica não terem trabalho é exactamente a simples inexistência de justiça social.

Outra razão da discordância da posição de Jordão: achar que é um completo desperdício de energia entrar em concursos que à partida têm soluções mais ou menos definidas, ou definitivas. E nem sequer me estou a referir a situações viciadas ou corrompidas; mas àquelas em que a existência de um júri “determinista” implica desde logo uma escolha apriorística, e onde se observam casos gritantes de favoritismo.

Recentemente a (confusa) legislação que regula os concursos obrigou a que os nomes dos elementos de um júri não fossem conhecidos até ao anúncio público da hierarquização das propostas. A intenção por detrás dessa decisão (que, diga-se, não tem sido aplicada em todos os concursos) seria, provavelmente, generosa: a de garantir a inexistência de pressões sobre os jurados. No entanto, acho, o secretismo que envolve a denominação do júri só irá contribuir para a falta de transparência do processo; dificultando, claro, a detecção atempada de relações entre jurados e concorrentes; e anulando qualquer hipótese dos concorrentes saberem à priori quem irá avaliar os seus trabalhos.

Por fim, uma última razão para não concordar com Jordão: achar perfeitamente lícito que um determinado Dono de Obra escolha o perfil dos autores a quem pede contributos; isto, evidentemente, com excepção dos casos em que a obra é pública.
Pela simples razão de que prefiro fazer projectos para concursos em que sei, à partida, do genuíno interesse e empenhamento desse cliente no trabalho que desenvolvo; oferecendo-me, dessa forma, mais e melhores garantias que a avaliação que me será feita é rigorosa, interessada e empenhada.

Sei bem que a posição que defendo assenta em pressupostos bastante pragmáticos. Também eu gostaria que a realidade fosse mais generosa, e que os concursos fossem todos eles exemplos do mais puro interesse naquilo que os arquitectos têm para oferecer. Mas assim não é , infelizmente.

A esse propósito tive recentemente oportunidade de ouvir Carlos Pedro Sant'Ana defender que aqueles que estão a ser realmente avaliados nos Concursos são os elementos do Júri, e não os proponentes. A ideia de Sant'Ana é generosa, e advém provavelmente do seu sentido ético. O problema é que os Júris, na sua maioria, ainda não se aperceberam disso: da sua responsabilidade social e profissional. Ou, pior: se se aperceberam, estão-se completamente nas tintas.


















Danae, Allegri da Corregio, 1531


Em relação à tese de Jordão, ainda uma última explicação da razão porque a acho invertida. É porque, ao contrário do ponto de vista de Pedro Jordão, não creio que os Concursos (públicos, limitados, por convite, à espanhola ou o que seja) existam para servir os arquitectos. Ou para lhes dar trabalho.

É exactamente o contrário: os arquitectos é que existem para fazer concursos.

Da hermenêutica

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Já sabíamos da irresistível queda do - sempre atento crítico e amador de arquitectura - António Machado para montar e desmontar coisas: uma espécie de passatempo metafísico a que quotidianamente se dedica, com afinco e com mestria.

Detectámos no entanto, recentemente, algumas limitações materiais, que mais cedo ou mais tarde porão em causa a eficácia dos seus exercícios teórico-práticos, relegando-os para formas menos apropriadas, e bem mais condescendentes.
















Falling water's FLW Lego Set, Lego Architecture, 2009. [agradecimento a Merino Rocha]

Face a isto só nos resta oferecer a nossa preciosa ajuda, apontando-lhe novos instrumentos operativos que lhe permitam reforçar a sua capacidade hermenêutica.

Rectificação à entrada anterior

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Adalberto Tenreiro (desenho) , via Flickr

Num comentários da entrada anterior referi, erradamente, as Piscinas da Taipa como sendo um projecto de Carlos Marreiros. Erro crasso: na verdade as Piscinas onde passávamos agradáveis finais das tardes de sábado, quando os sábados eram frios, são da autoria de Adalberto Tenreiro, outro homem que desenvolveu sua carreira profissional em Macau.

Da arquitectura de Tenreiro pouco sei para além das piscinas: umas passagens aéreas construídas algures na década de 90. Terá eventualmente colaborado com Vicente, mas mesmo isso é uma incerteza.












CEM - Central Eléctrica de Macau, Adalberto Tenreiro
[o edifício do lado esquerdo é a CEM de Coloane, da autoria de Manuel Vicente; ao qual Tenreiro justapõe um remate, que neste esquisso aparece ainda algo nebuloso]


De Tenreiro, o que retenho na memória são os desenhos.
Os desenhos de Tenreiro. Que, aposto, são uma espécie de exercício de puro hedonismo.

Na verdade acho que Tenreiro gosta de desenhar arquitectura, mais até do que a própria arquitectura. Coisa que não faz mal nenhum.
Aliás, só (nos) faz bem.

Entretanto, por terras do Mandarim

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Enquanto todos os países vão anunciando, aqui e ali, as formas dos pavilhões que irão construir em Shanghai, o estado, decidido, declara a representação oficial portuguesa na Expo 2010 uma prioridade.
Para assumir os respectivos trabalhos de preparação da embaixada nacional a Shanghai o governo nomeia o Doutor (e Arq.º) Rolando Borges Martins, que tinha sido já Comissário-Geral do Pavilhão Português em Saragoça, em 2008.

Entretanto a Parque-Expo, por mão do seu Administrador Rolando Borges Martins, celebra acordo de cooperação com a Ordem dos Arquitectos (cujo conselho fiscal é curiosamente presidido por Rolando Borges Martins) prevendo a promoção do recurso à encomenda pública de projectos, privilegiando os concursos de arquitectura; o que poderá (eventualmente) ser sinónimo do lançamento, em breve, do concurso aberto para o projecto de um pavilhão nacional numa Expo.

A confirmar-se, o facto seria uma boa notícia; tendo em conta que já passaram quase duas décadas desde que o último concurso público para um pavilhão foi lançado (para a Expo'92, em Sevilha, com projecto da dupla Manuel Graça Dias e Égas José Vieira) e que, desde então, a coisa já bateu no fundo.

Bom: na verdade isto que acabei de escrever são tudo desculpas para adiar o inadiável: o q'eu queria falar mesmo era do outro projecto português para a Expo Shanghai (comissários: a vossa especial atenção) que sem dúvida marcará decisivamente o evento: o Coelho!
















Expo Shanghai 2010: Pavilhão de Macau, Carlos Marreiros.

Queria falar mesmo disto.
Mas, admito, nada me ocorre por ora.

É que estou; como dizer: sem palavras.

Hertzberger

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O Hertzberger era mais pequeno do que as fotografias fariam supor. Fazia lembrar aquele jogador da NBA, dos tempos em que eu via a NBA em miúdo: pequenino. Um que jogava nos Chicago Bulls na altura do Jordan. Vocês sabem: no tempo em que os Celtics só tinham jogadores brancos. Um baixinho, com um nome que agora não me lembro.

O Hertberger era assim: pequeno. Mais pequeno parecia quando ficava rodeado de tipos altos pouco habituados a olhar para baixo; como no basket. E, como o tipo baixinho dos Chicago Bulls, era elegante quando passava, com toda a facilidade, à frente dos nossos olhos, como se tudo fosse a coisa mais normal do mundo. Como se a arquitectura fosse fácil de entender. De explicar e de fazer.
Encestava sempre. E ria baixinho antes de usar a mão esquerda para abotoar o botão de baixo do seu casaco castanho escuro.
Depois, no fim, rodava sobre os próprios calcanhares e desaparecia pelo corredor adentro, como nada de especial se tivesse passado.

Regresso à Bouwkunde

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Bouwkunde, Technische Universiteit Delft, Bakema/Van der Broek; NAI Archives; na imagem: link directo para o ficheiro de Bakema.

Chegava-se lá pela Makelweg. A meio do caminho ficava o Auditório desenhado pelo Bakema (iamos lá comer de vez em quando; para lá dos vidros da cantina via-se o buraco onde depois assentou a nova biblioteca da Universidade, que nunca chegámos a conhecer).
A Makelweg era, ainda deve ser, uma rua larga, com árvores dos dois lados, a separar os carros das bicicletas.
No inverno, pelas manhãs, instalavam-se aí grandes caixas com sal que, depois, era espalhado sobre o gelo da estrada.














Entrávamos normalmente pela porta das traseiras (na frente só deixavam estacionar bicicletas). Passávamos pelo grande Hall. Aquele onde o Hertberger dava os workshops, mesmo ao lado da oficina de maquetas, que era o espaço preferido de toda a gente.
Depois havia um corredor, largo, com mesas e cadeiras, que a meio dobrava e voltava a dobrar logo a seguir. Ligava à biblioteca e aos auditórios e, do lado oposto, à secretaria e o pequeno bar com a esplanada sempre inutilizada pelo frio.

Junto ao átrio da frente existiam mesas com rolos de desenho. Passávamos lá as tardes. A desenhar pouco. A falar muito. A fumar cigarrilhas com tabaco da indonésia que vinham numas caixinhas de alumínio amarelas. A ver quem entrava pela porta principal, que era quase toda aquele gente que andava de bicicleta.




















Lá para cima existiam mezzanines com escadas em caracol, que deixavam espaço livre para construir pequenas casa a sério (lembro-me de estar no oitavo andar a ver assentar tijolo, com aquele modo de assentar tijolos que se vê nas casas da Escola de Amsterdam, em que de dois em dois tijolos de coloca um com o topo para fora).
Dessas mezzanines dava para assistir a aulas de outras gentes sem bater à porta. Era também o sítio preferido para a fuga de fim de tarde.

Pensando bem: sempre tive sorte com a arquitectura das escolas de arquitectura por onde andei. E esta nem sequer foi a melhor.

Ainda sobre piromaniacos

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Sempre que há uma oportunidade, Pedro Bandeira cita aquela frase dos situacionistas. Aquela frase que deve ser a frase preferida do Bandeira. Aquela. A que deve ter sido dita pela primeira vez pelo próprio Debord. Que é mais ou menos isto: onde há fogo a gente leva gasolina.

Pensando bem: Pedro Bandeira teve sempre ar de ateador.
E de atirador também. Um atirador furtivo, daqueles que consegue ficar dias e dias sem se mexer, deitado de barriga para baixo, a tocar no metal com cheiro ao metal de uma carabina. Pacientemente. À espera de algo que se mova no sentido contrário ao da lógica.

Artes do Ofício

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Huambo, por Gonçalo Afonso Dias, 2009 [aqui e ali]

Gonçalo Afonso Dias: arquitecto, autor das (segundas) melhores Residências Universitárias construídas em Portugal nas últimas décadas (das outras Residências do mesmo autor não tenho tantas certezas, mas concerteza que não serão as piores), fotógrafo, artista, polémista, crítico de arquitectura e, provavelmente, o melhor divulgador da arquitectura moderna (e não só) feita por terras de Angola.

Dos piromaniacos e d'outros perigos

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No número 42 da Rue Fontaine, junto ao Pigalle, André Bretón juntou, ao longo das duas décadas que ali viveu, uma miríade de objectos: manuscritos de Trotsy, de Apollinaire e de Freud. Desenhos de Dali. Pinturas de Magritte e de Miró. De Picabia. Fotografias de Man Ray. Centenas de peças de arte popular vindas da América do Sul e de África. Fósseis sem aparente valor, cheios de pó, arrumados em prateleiras onde estavam caixas e mais caixas com correspondencia pessoal do poeta. Pequenas esculturas de Kandinsky. Coisas do Duchamp. Mais uma ou outra tela do Picasso. Uma data de cadavres exquis de uma data de autores que o fim do surrealismo fez esquecer.

Um dia alguém terá perguntado a Bréton qual das obra de arte resgataria de um eventual incêndio em sua casa. O fogo, claro; replicou.

Jeanne d'Arc

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Sobre Joana d'Arc valerá a pena relembrar imagens do projecto da Igreja com o mesmo nome, da autoria de Louis Gerald Arretche (1905-1991), em Rouen (1963-1979).

Mas o que fazer quando tudo arde?

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A ambiguidade da profissão de tradutor é mais que certa. E isso não discutimos.
Agora que me sinto com vontade de mandar vir o What Can I Do When Everything’s on Fire? pela Amazon, ai isso é que sinto.

Não é que desconfie das competências linguísticas de Gregory Rabassa. É mais do Inglês mesmo, que não deve ser suficiente. Ou se é, às vezes não parece.

ps. Até podem dizer que as capas os livros são feias em Portugal. Mas começo a achar que isso não é totalmente verdade.

Jeanne d'ARC?

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Joana d'Arq queimada pela Inquisição, 1889 , Jules-Eugène Lenepveu . Coitada.

Com base nas largas provas reunidas na entradas anteriores conclui-se portanto um conluio que prepara o óbvio regresso da inquisição (deve ser da data), desta vez ávida de queimar todas essas Joanas d'Arq(uitectura) que populam por aí.

Nero?

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Nero (37-68 DC), [1905]
: uma questão de bom gosto.

De incêndio em incêndio: com o fim da Bouwkunde há um ano, e depois do edifício da CCTV, é a vez da Ópera de Guangzhou confirmar a estreita e profícua relação entre a arquitectura e a piromania.

Nero terá declamado Ilioupersis durante o incêndio. Fiquemos pois com um fragmento do Épico (em inglês, enfim):

The Greeks, after burning the city, sacrifice Polyxena at the tomb of Achilles: Odysseus murders Astyanax; Neoptolemus takes Andromache as his prize, and the remaining spoils are divided. Demophon and Acamas find Aethra and take her with them. Lastly the Greeks sail away and Athena plans to destroy them on the high seas.

13 de Maio

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Bouwkunde, TU Delft, Van den Broek / Bakema, 1956 [arde a 13 de Maio de 2008
]. Via Flickr: VahidG

É de certa forma estranha a sensação de ter estudado numa escola que já não existe.
Sinto-me uma espécie de ex-aluno da Moderna ou da Independente.

Inquérito à Arquitectura Popular em Portugal #2

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Vivenda (Diolinda), Casais, Tomar [ 2008]

Vanity Affair

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Já o Gonçalo M. Tavares começa a ter ar de escritor e tudo.

Só não quero é que me digam o que é que quer dizer aquele éme.
É que até pode ser coincidência. Mas desde que soube que CJ eram as iniciais de Claudia Jean, o West Wing tem vindo a perder interesse.

Vanity Fair

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Que contrariedade esta: ver o Mexia a dar autógrafos, com um risinho um pouco ou nada orgulhoso, e jeito um pouco ou nada vaidoso.
Ainda por cima num livro ostensivamente chamado de Estado Civil.

A Regra do modelo

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To see the strangeness in writings on urbanism, one must first be willing and able to recognize what is out of the ordinary and improbable in their undertaking, when seen against the background of how, in the cultures of the world, throughout history, humans have gone about organizing and building their settlements. The creation of a specific, autonomous discipline for the construction of space is an enterprise whose uniqueness and audacity are easy to miss because of its present universality and banality.

The Rule and the Model, F. Choay, 1980.
Patrimoine et Mondialisation. Quels combats à mener?; Françoise Choay: 12 de Maio, 16 h, Anfiteatro 1 da Faculdade de Letras, Universidade de Coimbra.

Lugares perfeitos

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...ou o link que leva ao link que nos leva lá. A esses lugares perfeitos.

O Terreiro: passo

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Praça do Comércio, via BicLaranja

Parece ingenuamente pobre este novo projecto para o Terreiro do Paço. aquele desenhado do pavimento, aquele eixo tautológico que só serve para banalizar o óbvio. O que, claro, nos leva a concordar com as críticas que lhe são feitas um pouco por todo o lado.

Parece pobre - menos ingénuo, embora - esta condução do processo: desde a encomenda do projecto a Bruno Soares - sem qualquer tipo de concurso público -, ao modo como este foi apresentado à cidade - sem qualquer tipo de cretério. O que, claro, nos leva a concordar com as críticas que lhe são feitas um pouco por todo o lado.

Parece pobre, excessivamente pobre, esta maneira de lidar com os cidadãos. E de (re)fazer cidade. Ingénua ou não.

Muito já foi já dito e escrito sobre o assunto. Com excepção de um pequeno pormenor: é que de facto houve um Concurso Público para o Terreiro do Paço, lá para o final dos anos 90. Desse concurso saiu uma proposta vencedora, da autoria da dupla Pedro Pacheco e José Adrião.
Nesse processo houve o envolvimento da Ordem dos Arquitectos (na altura respondia por outro nome: Associação dos Arquitectos), da Câmara Municipal de Lisboa, de Júris, de Arquitectos, de Equipas de Projecto, de Vereadores. Houve dinheiros públicos gastos. Houve discussão. Houve possibilidade de escolha. Houve decisão.

Pergunta-se então: qual foi a utilidade desse concurso público? Dessa Ordem dos Arquitectos? Dessa Câmara Municipal? Desse Júri e desses arquitectos? Dessas Equipas de Projecto? Desses Vereadores? Desse gasto de dinheiros públicos? Dessa discussão? Dessa possibilidade de escolha? Dessa Decisão?

Quando as Baleias eram Brancas

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Isabella Rossellini, Green Porno, 2ª Série (2009), Sundance

A Trágico-Maritima e outras histórias

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Há coisas que não se parecem com nada: numa das estradas da ilha de S. Miguel repousa uma casa (julgo que é uma casa) que é, na verdade, um barco. Um barco empinado sobre a terra.
Este barco, esta casa, está bastante afastado do oceano, pelo que desconfio que a coisa não é fruto do acaso.

[Para aqueles que não fazem a mínima ideia de qual casa me estou a referir – pelo menos aqueles que têm a minha idade - a imagem mais próxima que vos posso oferecer é a do Barco de Chanquete, que dava guarida ao barbudo pescador da série de televisão espanhola.]















La Dorada: el barco de Chanquete, Verano Azul, 1981

Ora, do mesmo modo, desconfio que a Casa do Voo dos Pássaros, tal como a Capela do Céu e a Casa da Nuvem Flutuante, não é (são) fruto do acaso. Os três projectos revelam a insensatez de quem faz arquitectura por puro empenho dos sentidos; como que o mundo todo se explicasse pela arquitectura.

O desenho do tecto da Capela do Céu é deixado ao livre arbítrio das nuvens atlânticas, que atravessam os Açores quase sem dar por isso. A Casa da Nuvem Flutuante é uma espécie de exercício taxinómico da arquitectura: desventra-se o seu interior, para se revelar que a disciplina tem a capacidade de se ultrapassar a ela própria. E a Casa do Voo dos Pássaros confirma a hipótese da ânsia do Capitão Ahab ainda existir: correr atrás da baleia branca, como se isso fosse o único propósito da (sua) existência.

Receio que algum dos três projectos, num dia longínquo, se possa confundir com a Casa/barco que tão estranhamente julgamos cada vez que por lá passamos. Mas este risco, entre o patético e o sublime, sempre foi a natureza mais interessante que o pensamento teve para oferecer.













Moby Dick, John Huston, 1956.

Quando ao seu autor, duas hipóteses lhe vislumbramos: perseguir eternamente a Baleia Branca ou parecer nela, enliado na teia de cordames que ele próprio tem vindo a tecer em sua volta.
Qualquer dos fins será, sempre, um belo princípio.

Arquitectura suicidária

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Moby-Dick: arquitectura ou suicídio?

A espera

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São Miguel é um lugar paradoxal. Na ilha coexiste o mais sério caso de cosmopolitismo (médico de família em Boston, compras em Nova Iorque, concertos em Lisboa, estudos em Paris, um jantar na ilha vizinha) com uma total distanciação daquilo que é ser cosmopolita.

Dir-se-ia que esse cosmopolitismo está profundamente enraizado num certo modo de vida das gentes da terra. Basta ler Nemésio. Ou recordar os nomes de família mais sonantes. O açoriano sempre dependeu de uma espécie de troca com o exterior.

Ora, o que mais impressiona na Ilha é essa contradição visível entre cosmopolitismo e inércia.
As cidades são atarracadas e atamancadas sobre si próprias, como que um engelho feito casario.
As gentes - aquelas gentes que nunca tiveram médico de família em Boston, nem estudaram em Paris -, têm os olhos cravados no infinito.
Algumas andam descalças, como que se o mundo lhes tivesse pedido para esperar. Sentam-se num degrau junto à porta das suas casas pequenas, todas iguais, e todas fechadas para o mar que está logo ali atrás.

Os Açores foram dos últimos sítios do mundo onde, até há pouco tempo, era permitido caçar baleias. Quando não havia ainda petróleo que iluminasse as candeias das casas, os Açoreanos saíam da ilha em barcos mínimos em busca do óleo de baleia (na verdade, a única coisa realmente aproveitável depois de tamanha matança a tamanha coisa).










O Arco e a Orquídea [algures na China], Bernardo Rodrigues, 2007

Surpreendentemente, aquilo que era mais violento na caça às baleias (chamemos-lhe assim) não era propriamente a cena na qual os arpoeiros fustigavam os pobres animais que, ao senti a dor do arpão aferroado, imediatamente mergulhavam nas águas. Nem sequer era o momento em que a força do cachalote fazia guinar o barco; e quando os homens engoliam em seco, esperando que o monstro não tivesse forças para os arrastar para as profundezas. Não.














Moby Dick, John Huston, 1956.

O mais violento numa caça à baleia era a espera: sentados no pequeno barco, dias a fim, esperando pacientemente que o animal surgisse à sua frente.






















Com escreveu um dia Rui Zink: A caça não era, com eu julgava, o atirar do arpão que jazia no fundo do barco, amarrado a um rol de corda que, de tão grossa, mesmo enrolada, criva uma espiral que alastrava por toda a proa – Muitos já morreram ao deixar o pé ali – tinham-me dito. – Foram logo de um jorro arrastados pela baleia. Não. A caça, a caça era a espera.

A caça das baleias acabou há muito, é certo. Mas a espera, a espera nos Açores contínua a ser a tarefa mais árdua de quem ali vive.

A Purga

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Deve ser por serem Brancas. As Catedrais. Se Vermelhas fossem, talvez não tivessem sido vítimas de Purga. A Purga do MOB.

O Cinema, paraíso

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..ou o que dele resta, nas memórias de uma escada, num outro paraíso.
















Complexo Científico da Universidade de Aveiro, Victor Figueiredo [via Flick: João Pereira de Sousa]

O Cinema, paraíso

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Cinema Éden, Cassiano Branco (terceira proposta, 1931) [via Geocities]

Preencher (como n) o passado

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Com a (recente) elevação d’As Catedrais a leitura (obrigatória?) do inner circle autárquico lisboeta várias perplexidades m’assaltam, sem que consiga no entanto libertar-me dessa outra (bem mais constrangedora) dúvida que o devia assaltar a ele: ao inner circle: não seria espectável, normal até, ouvir da boca de algum candidato a Presidente de Câmara (ou, vá lá, do seu staff eleitoral) uma ideia (uma ideia sequer) sobre aquilo que irá (irão) ser a(s) nossa(s) cidade(s) daqui a 20 anos?

Mas não! Nada!, a não ser, por ora:

Durante anos, este cinema [Capitólio], que também foi teatro, e pista de patinagem, serviu a boémia Lisboa. O facto é que durante tantos outros anos este espaço foi deixado degradar e ninguém por ele se interessou.
Teria Frank Gehry compreendido melhor o que fazer com este espaço? Teria a intervenção que programou significado para a cidade? Com certeza que sim, mas perdemos a oportunidade de ver requalificado um espaço cheio de história e memória. A ver vamos o que vem por aí, tudo farei para que vingue e nos preencha como no passado.


João Mesquita, em amável contributo (à procura de polémica arquitectónica, é certo, mas ainda assim amável) na
entrada anterior
Analisemos o teor desta curta prosa, da autoria de João Mesquita (a quem aproveitamos para dar as boas vindas), intimo da prosaica ideia de ter um Frank O. Gehry em Lisboa e, depois, activo acompanhante do recente processo de Requalificação do Parque Mayer.

Sabemos, claro, da genuína preocupação que um autarca moderno venha a ter com o Parque Mayer. Como o deve ter com a Baixa. Ou com o Cais-do-Sodré. Com a Av. da Liberdade. Ou o Bairro Alto. Ou, já agora, com toda a cidade.
Não desconfiamos, alias, um segundo sequer, que essa preocupação exista: a preocupação de ter uma cidade civilizada, onde seja (mais) simples viver, (mais) agradável trabalhar. Uma cidade (mais) acolhedora. (Mais) simpática. (Mais) fácil.

E no entanto aquilo que nos é oferecido em troca de termos escolhido viver em Lisboa, por parte desses autarcas modernos – preocupados com uma cidade civilizada, onde seja (mais) simples viver, mais agradável trabalhar. Mais acolhedora. Mais simpática. Mais fácil – é, apenas, o marasmo.
Esse marasmo que envolve há décadas um bom punhado de vereadores, dezenas de assessores, milhares de funcionários, intermináveis horas passadas em assembleias municipais, discussões estéreis, burocracias vãs.

Ao contrário do que Tanner nos quer mostrar, Lisboa não é uma cidade anacrónica. O que é anacrónico é o método de lidar com ela. Com Lisboa.

[faz lembrar aquela resposta dada pela personagem interpretada pelo Martin Shean no Apocalypse Now, quando Kurtz/Brando o questiona sobre o seu método: I Don’t see any method… at all]

Lisboa nada sabe do seu futuro.
Um futuro que se perde em polémicas de parangona. Onde um túnel (um simples túnel) ou um Casino (um simples casino) se tornam em empolados debates de dimensão nacional. Onde um cartaz (a mais ou um cartaz a menos na rotunda), uma esplanada (na Avenida), ou um prédio (no Rato), obrigam a intermináveis, absurdas, ensimesmadas discussões entre todos aqueles que são pagos para gerir, para prever, para fazer cidade; e não para fazer aquilo que fazem os dias inteiros: perder tempo [que é o mesmo que dizer: perder cidade].

Lisboa é uma cidade dispersa em questões menores, perdida em frugalidades de gabinetes e de corredores – esses gabinetes e esses corredores de que tanto gostam as pessoas que julgam gostar de política. Uma cidade mandada por gente cujas ideias muitas vezes se resumem a mandar limpar uns graffitis de vez em quando, e onde a grande polémica do urbanismo é, hoje, um painel de azulejos numa casa (já agora: menor) há muito perdida.

Meu caro João Mesquita: nada, mas mesmo nada teria a opor a um projecto do Gehry para o Parque Mayer, ou para outro lado qualquer. Como nada tenho a opor à ideia de requalificar um espaço cheio de história e cheio de memória.

Entenda: é que toda a (outra) cidade está cheia de história e cheia de memória. História e memória essas bem mais significativas do que a meia dúzia de anacronismos misturados com o cheiro de farturas, mulheres de mau porte e edifícios em idade de reforma, que fazem, todos juntos, esse seu passado. Um passado que, entenda-se, jamais será preenchido: um passado estéril e inútil, tanto como as ruínas desse Capitólio que tanto lhe agrada (admito: a mim também me agrada; embora, provavelmente, por outras razões).

Gehry pareceria até uma boa ideia, se óbvia não fosse a ingenuidade do olhar de quem um dia se lembrou de repetir esse brilhante efeito Bilbao que tanto ofusca a falta de objectivos concretos.
Gerhy seria uma boa ideia se sustentada por um concurso que (vá lá) acabou por acontecer.

Por isso: em vez de pensar no passado não seria melhor para todos nós – por arrasto, para si também – tornar claro aquilo que vos faz mover?
Esquecer aqueles fait divers que enchem os vossos Twitters e os vossos jantares partidários, deixar de ler as sondagens do Expresso aos fins-de-semana , pôr de parte a obrigatoriedade de se preocuparem com aqueles que com nada e com ninguém se preocupam, deixar de fazer fretes, esquecer essa ideia tão em voga de que um cargo é apenas a catapulta para um outro cargo; e, por uma vez, pensar seriamente aquilo que Lisboa será daqui a 20 anos?

É que, degradada, está Lisboa inteira. E o futuro dela, sobretudo.

O cinema, perdido

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Teatro Capitólio, Luís Cristino da Silva, 1931 [2009].

Crítica de Arquitectura

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João Pedro Falcão de Campos ou a inconsequência de um pequeno incómodo quotidiano.

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